quarta-feira, 18 de maio de 2016

O bêbado e a equilibrista - Uma reflexão sobre os anos de chumbo

De 1964 a 1985 o Brasil viveu sob a tutela dos militares, período que ficou conhecido como anos de chumbo, devido à violência sofrida pelos opositores da ditadura. Muitos foram mortos pela tortura e milhares se exilaram em outros países. Infelizmente esse período tão sofrido está sendo esquecido pela nova geração. O texto abaixo destina-se à reflexão em sala de aula por alunos do nível médio para resgate da memória de uma época que não deve ser esquecida jamais.



     
   Com o advento do golpe militar de 1964, a perseguição política foi uma constante nos seus vinte anos de reinado de chumbo. As garantias individuais foram suspensas, a Constituição Brasileira se tornou peça decorativa e passou-se a viver um verdadeiro massacre das ideologias no país: os seres pensantes que tentassem se manifestar contra o regime, eram presos, exilados ou mortos nos calabouços estatais. 
 
Em 1964 a classe artística passou a levantar a voz contra o golpe. O primeiro coro se fez ouvir no Show Opinião, no Teatro de Arena, no Rio de Janeiro. Dirigido por Augusto Boal, estreou em 11 de dezembro desse ano e tinha no seu elenco Nara Leão, Zé Keti e João do Valle. No ano seguinte, devido a problemas de saúde, Nara Leão teve que deixar o palco, sendo substituída por Maria Bethânia.

Os festivais internacionais da canção que começaram em 1966 e duraram até 1972 se transformaram em verdadeiros festivais de protestos, cujas letras e autores só passaram incólumes porque os censores da ditadura não compreendiam as metáforas explícitas das canções. Mesmo assim muitos artistas foram presos e exilados, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Nara Leão.

As músicas desse período passaram a conter letras profundamente políticas e essencialmente transpostas para o sentido figurado, cujas informações subliminares eram do conhecimento da classe artística e dos politicamente engajados que se encarregavam de passar adiante, aos militantes e simpatizantes leigos em metáforas.

Com a morte de Charles Chaplin em dezembro de 1977, João Bosco compôs uma música em homenagem póstuma a ele. Mostrou a melodia ao parceiro Aldir Blanc. Este, fez uma letra referenciando os mortos e perseguidos políticos brasileiros em detrimento da vontade primeira do criador da melodia. Assim nasceu O Bêbado e a Equilibrista, uma música totalmente metafórica, contextualizada no pensamento de vanguarda dos anos de chumbo, e dialogando com os tristes acontecimentos dessa época. Gravada em 1978, foi sucesso imediato na voz de Elis Regina. Por fazer referência a Herbert de Souza, o Betinho, (o irmão de Henfil, um cartunista famoso, que nessa letra rima com Brasil) um das dezenas de exilados brasileiros, tornou-se o hino das manifestações em pró da anistia política que agitava o sono dos militares. A anistia aconteceu no ano seguinte. 

O Bêbado e a Equilibrista
Letra: Aldir Blanc
Música: João Bosco

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco, o bêbado com chapéu coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil, meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora a nossa pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil.

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar

    
Carlitos era um mito, o herói do homem comum, o marmiteiro, o operário, o trabalhador urbano no seu humilhante trajeto em ônibus lotados, encostados no paredão pela elite burguesa. Ator e personagem não se dissociavam mais, e assim Chaplin se confundia com seu próprio personagem. Era
a nobreza da alma do eu lírico proletário que se insurgia contra o capital. Contudo, na primeira estrofe da música, Blanc reduz a pó do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, o simbolismo utópico representado em Carlitos. Proibido de ser noticiado pela imprensa, poucos ficaram sabendo do desabamento desse viaduto, que caiu sobre vinte carros, um ônibus e um caminhão, em janeiro de 1971, matando 28 pessoas. Era a época do chamado “milagre econômico”, cantado e decantado em prosa e verso pelo Sistema Globo de Comunicação, principal porta-voz da ditadura. Nada poderia manchar a imagem do delírio ditatorial. 

Também era no cair da tarde que os infectos porões começavam a gemer nas suas sessões de tortura.
A segunda estrofe da música metaforiza a Lua, um astro sem brilho próprio, que precisa roubar do Sol a luz que a faz se destacar no nosso céu. É a luz das metáforas que nos remete aos reflexos do passado, ao brilho do Sol que transmuta a escuridão e ilumina a degradação moral dos políticos que se renderam ao golpe militar na intenção de meter a mão nos recursos públicos, representados pela cafetina que se apropria indevidamente dos bens das mulheres do bordel.
O mata-borrão, um papel usado para não deixar a caneta tinteiro borrar o papel por excesso de tinta, era o controle para que não deixassem borrar de sangue o chão externo dos porões. Os gritos dos torturados não deveriam ecoar além do ambiente de terror e revelar a mente doentia do torturador, que geralmente escolhiam a noite para exercitar seus instintos de crueldade.

Dezenas de brasileiros partiram em exílio. Centenas de brasileiros morreram sob a chancela de um Estado assassino. Desses que não resistiram à tortura, os mais emblemáticos foram o metalúrgico Manuel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog. Na música eles são representados por suas mulheres, Maria, mulher de Fiel Filho, e Clarice, mulher de Herzog, pluralizadas para estender a referência às outras centenas de mulheres brasileiras que vestiam luto pelos seus filhos, seus pais, irmãos ou seus maridos.

Porém as dores não serão de todo inúteis.  Apesar de andar na corda bamba, a esperança é equilibrista e por ela perseveramos mesmo nas piores situações. Enquanto houver alguém no planeta Terra gritando pelos oprimidos, a Caixa de Pandora se manterá fechada e a realização das utopias sempre será um sonho possível.

QUESTIONÁRIO

     
  Apesar de Aldir Blanc denunciar na música O bêbado e a equilibrista a situação de terror e medo vivida no país, a intenção inicial do compositor João Bosco de homenagear
Charles Chaplin foi mantida. Onde podemos identificar essa homenagem?
       Por que os vinte anos de ditadura militar ficaram conhecidos como "Os Anos de Chumbo"?

        A música acima, mesmo antes de ser gravada, virou o hino das marchas a favor da anistia política que agitou o país. Entre os anistiados políticos que retornaram, encontravam-se dois ex-governadores cassados pela ditadura e, posteriormente à anistia, se elegeram governadores na primeira eleição direta depois do golpe. Identifique pelo menos um desses dois políticos.


        Depois do retorno de Betinho, ele abraçou duas causas: uma, pelo próprio drama que vivia, não só o dele, como dos seus irmãos; a outra, pelo resgate da cidadania, ambas também abraçadas pela sociedade e que se transformaram em ações de governo. Quais causas foram essas?  
 
Fazendo uma analogia, podemos afirmar que a situação política do Brasil vivida hoje, é um processo similar ao golpe de 1964? Cite alguns motivos análogos.