segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O OLHAR DO LIVRO DIDÁTICO PARA A SOCIOLINGUÍSTICA E A GRAMÁTICA

 

Benito Carlos Gomes F. do Nascimento*

Pedro Costa Pereira*

Ronaldo Antonio Torres Cruz*

Roseane Elias dos Santos*

 

 

 

 

 

1.    RESUMO

 

O presente artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica de fontes específicas da área de sociolinguística e de projetos integradores IV, e tem como objetivo refletir e discutir o contributo que as autoras Roberta Hernandes Alves e Vima Lia Martim oferecem para a compreensão da sociolinguística e da gramática do livro didático do 1º ano do Ensino Médio, Veredas da Palavra. Elas dedicam um capítulo inteiro explorando a questão das variações linguísticas e do preconceito linguístico, o que nos permitiu dialogar com os autores Marcos Bagno, Sírio Possenti e Lívia Suassuna e trazer à luz da reflexão a abordagem dos fenômenos linguísticos e os significados que assumem em diferentes contextos regionais e sociais. Observamos que o assunto abordado no livro didático não foi suficiente para trabalhar a variação linguística de maneira que alunos e professores tivessem um nível razoável de compreensão.

 

Palavras-chave: Sociolinguística. Projetos integradores IV. Gramática. Livro didático.

 

2.    INTRODUÇÃO

 

Monteiro Lobato, no início da terceira década do século vinte, escreveu que “A língua é um meio de expressão. Modifica-se sempre no sentido de aumentar o poder da expressão. A variedade de coisas novas que tivemos necessidade de expressar, num mundo novo como o Brasil, forçou e força no povo um surto copiosíssimo de vocábulos” (LOBATO, 1922, p. 184). Adepto do movimento modernista que se insurgiu contra a ditadura da gramática, Lobato chamava a atenção para a miscigenação presente na nossa língua desde o dia em que a esquadra de Cabral aportou no sul da Bahia.

Quase cem anos depois que Lobato escreveu esse artigo, apesar da evolução da língua(gem) em ritmo acelerado, apesar da revolução causada pela nanotecnologia, a nossa gramática normativa continua atrelada às âncoras dos navios dos colonizadores, tecendo loas à nossa unidade gramatical. A linguística aplicada há décadas que vem investigando a língua como fenômeno heterogêneo e variável, porém “numa comparação com a produção bibliográfica sobre linguística textual, letramento, leitura, escrita, gêneros textuais, análise do discurso etc., a gente logo percebe que são poucos os títulos que abordam especificamente a variação linguística” (BAGNO, 2014a, p. 29).

Fazendo um passeio na história recente da educação no Brasil, veremos que até a década de 1960 as escolas públicas eram em número reduzido e se concentravam nas cidades, cujas vagas eram destinadas, em sua maioria, aos estudantes oriundos da classe média. O desenvolvimento industrial em ritmo acelerado, a partir de meados dos anos 1960, aumentou o êxodo rural, causando o crescimento desordenado dos grandes centros urbanos e graves consequências sociais. Era preciso repensar a educação, então foram construídas novas escolas para acolher os filhos dos deserdados sociais e isso resultou no desprestígio total do ensino público. A precariedade tornou-se visível: salas superlotadas, prédios mal construídos, material de uso didático insuficiente e professores mal pagos e mal formados. Esse é o perfil da nova escola construída a partir da tomada de poder pelos militares. A isso, chamaram de “democratização” do ensino no Brasil, o aumento quantitativo em detrimento do qualitativo. (BAGNO, 2014a, p. 30, 31).

Os frequentadores da escola pública antes da democratização eram, em sua maioria, falantes das variedades linguísticas urbanas, usuários de uma prática mais formal da linguagem. Os professores eram oriundos da classe média que tinham o hábito da leitura e conhecimento de uma língua estrangeira, sobretudo o francês, considerada uma língua de prestígio na época. E essa foi a realidade encontrada pelos alunos egressos da classe pobre ou miserável. Os materiais didáticos eram insuficientes ou conflitantes com a diversificação sociolinguística, sociocultural e socioeconômica. A formação docente também não estava preparada para lidar com os novos desafios. A variação linguística, em vez de ser tratada como “a língua em seu estado permanente de transformação, de fluidez e de instabilidade” (BAGNO, 2014a, p. 38), era tachada como erro gramatical do falante. Gerações depois da “democratização” do ensino, aqueles falantes de variedades desprestigiadas passaram a ocupar a carreira de docente e com isso as construções gramaticais consideradas erradas pela norma-padrão também invadiram as salas de aula na fala dos professores, o que levou a linguística aplicada a concentrar suas pesquisas nas variedades linguísticas.  (BAGNOa, 2014, p. 32 e 33).

A atividade linguística é aquela praticada pelos falantes nas suas comunidades, cuja finalidade é servir como instrumento de interação social. Sendo usuário dessa prática linguística, o estudante leva-a para a sala de aula e geralmente sofre o preconceito e os professores se sentem despreparados para lidar com a situação, pois a sociolinguística é praticamente ignorada pelos autores dos livros didáticos, que privilegiam a norma-culta em detrimento da variação linguística. “A escrita, a literatura, e a escola são instituições eminentemente sociais, são invenções culturais, criações artificiais e muito recentes na história da humanidade” (BAGNO, 2014a, p. 35), portanto, são fatores instáveis e a língua está sempre se reinventando, e a padronização sem exceção da regra é uma idealização em descompasso com a evolução linguística.

Nos PCN de 1997, o Ministério da Educação finalmente reconheceu as variedades dialetais dos falantes brasileiros e recomenda que o preconceito linguístico seja combatido na escola (BAGNO, 2014, p. 27). Isso foi um grande passo na mudança da concepção de ensino, porém é preciso vencer “a resistência das pessoas muito apegadas às concepções antigas e a falta de formação adequada dos professores [...]” (BAGNO, 2014a, p. 28). A consequência disso é que a variação linguística não é tratada pelos docentes conforme determinada nos PCN, principalmente por falta de um aporte teórico razoável nos livros didáticos de língua portuguesa.

Diante do exposto, o presente artigo se propõe a analisar como o livro didático apresenta as variações linguísticas e a gramática internalizada, descrevendo os fenômenos linguísticos nos campos morfossintáticos e léxico-semânticos, ou seja, como a palavra se expressa e os significados que assume em diferentes contextos regionais.

 

3.    DIALOGANDO COM A TEORIA

 

Trazemos alguns conceitos importantes para a compreensão das variações linguísticas e gramaticais teorizadas por Marcos Bagno, Sírio Possenti e Lívia Suassuna na análise do LD Veredas da palavra, considerando que apenas esse recorte teórico não será suficiente para a compreensão da complexidade dessa abordagem temática.

Iniciaremos abordando a heterogeneidade das línguas que, na concepção dos sociolinguistas, é múltipla, variável, instável e está sempre em desconstrução e reconstrução. Ao contrário da norma-padrão, que é idealizada como um produto homogêneo, a língua é um meio de interação social e em constante processo de mudanças (BAGNO, 2014a, p.36).

A colonização portuguesa usou a violência como ferramenta de dominação cultural, principalmente a língua(gem). Mas o português que ficou no litoral ou que adentrou o interior perdeu sua originalidade na diversidade linguística praticada pelos índios, pelos negros vindos da África e por outros invasores, tais como, franceses e holandeses. A lição que podemos tirar dessa miscigenação linguística é que não existem línguas estáveis. A linguagem é dinâmica e está sempre em processo de mutação. O português, que era latim, é um exemplo desse processo mutante. A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal descrevendo o descobrimento usa uma linguagem diferenciada da linguagem atual. Por sua vez, o latim não foi a língua falada no advento do Pecado Original. Resultou das mutações de outras línguas e também se modificou tanto que dela nasceram outras línguas, a exemplo do francês, italiano, espanhol, além do próprio português (POSSENTI, 2002, p. 37).

“A análise linguística é uma prática mais ampla que envolve a gramática”. Os assuntos envolvendo o dígrafo ou às estruturas da língua ou à ortografia são questões consideradas gramaticais, ao passo que a compreensão de um texto é uma questão linguística (SUASSUNA, 2012, p. 14). Em ambos os casos, “o fundamental no estudo da gramática/análise linguística é contemplar a variedade de recursos expressivos postos à disposição do falante/escritor para a construção de sentido” (SUASSUNA, 2012, p. 15).

Na análise linguística há três distinções de atividades linguísticas: atividade linguística, epilinguística e metalinguística, porém nos ateremos apenas à atividade linguística, que é a atividade de comunicação que o falante pratica na sua comunidade e o LD deve abordar em condições adequadas de maneira que promova a interação social do aluno (SUASSUNA, 2012, p. 16).

 

4.     METODOLOGIA

 

Este trabalho se configura e se caracteriza como uma pesquisa de natureza qualitativa, que tem como objetivo compreender como se manifesta a abordagem das variações linguísticas a partir das observações subjetivas das narrativas escritas e suas particularidades no livro didático (LD) cuja materialização das concepções teóricas se concretizou na análise do corpus, do LD, Veredas da Palavra, das autoras Roberta Hernandes Alves e Vima Lia Martim, editora Ática. Da obra, selecionamos o LD do primeiro ano Ensino Médio que aborda esses dois fenômenos linguísticos. O livro didático está organizado em cinco grandes unidades estruturadas em vinte capítulos.

Analisamos o capítulo 15 que está organizado em tópicos, cujas abordagens estão elencadas da seguinte forma: a) Variedades linguísticas; b) Variedades linguísticas e competência comunicativa; c) Norma-padrão e normas urbanas de prestígio; d) As perspectivas da linguística e da gramática normativa; e) Gíria: uma forma de construção da identidade linguística; f) Preconceito linguístico.

Trazemos à análise os tópicos “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, ou seja, os que estão vinculados às variações linguísticas e estabelecemos relações desses tópicos com os enunciados dos teóricos Bagno, Possenti, Suassuna, no que se referem à sociolinguística e à gramática.

O procedimento metodológico teve seu início com a análise de elementos obtidos a partir da pesquisa bibliográfica. Depois desse processo, houve o diálogo entre a literatura acumulada e as informações adquiridas por meio da observação do material selecionado, com vistas a análises abarcantes. Por fim, depois das discussões, vieram as considerações finais.

 

5.    PONDERANDO O TEMA PROPOSTO NO CAPÍTULO 15

 

As autoras abrem o capítulo 15 (p. 256) com o texto intitulado de Mapa da tangerina, extraído do livro de crônicas Percatempo, tudo que faço quando não há o que fazer, de Gregório Duvivier.

Esse texto traz as palavras tangerina, poncã, mexerica, bergamota associadas ao mapa das regiões brasileiras, e transmite a ideia de que são variantes regionais, ou seja, vários nomes para uma mesma fruta, a tangerina. As autoras do LD também entenderam o Mapa da tangerina dessa mesma forma e trazem duas questões relacionadas às variações que a língua(gem) sofre de região para região. Na primeira, elas direcionam o olhar do aluno para as diferentes formas de se falar uma mesma palavra em lugares distintos. Na segunda, perguntam sobre os conhecimentos dos estudantes acerca da variação regional.

 Entendemos que esse exemplo específico do LD não se aplica à variante regional, uma vez que não se trata de dizer diferente a mesma coisa, mas de se nomear diferente as espécies da fruta tangerina. Nossos argumentos são fortalecidos no enunciado de Bagno: “a definição mais simples de variante é a de ‘cada uma das formas diferentes de se dizer a mesma coisa”’ (BAGNO, 2014a, p. 50). Um exemplo de variante regional é a mandioca, da família Manihot palmata, diferente da Manihot esculenta que só serve para fazer farinha (HOUAISS, 2010), em parte do Nordeste é conhecida como macaxeira, na Bahia e em outros estados do Sudeste, aipim, e na Região Sul, mandioquinha. Assim, temos vários nomes para a mesma coisa, o que podemos dizer, nesse caso, que há uma variação dialetal, “um termo usado há séculos, desde a Grécia antiga, para designar o modo característico de uso da língua num determinado lugar, região, província etc.” (BAGNO, 2014a, p. 48). A tangerina em questão tem o nome científico Citrus reticulat, a mexerica Citrus deliciosa, a bergamota Citrus aurantium  e a poncã, Citrus reticulata, uma variedade de tangerina grande e de casca frouxa, originária do Japão (HOUAISS, 2010). Essa última é vendida nos supermercados como laranja poncã; as demais, podemos encontrá-las expostas na mesma gôndola de frutas dos supermercados com os seus respectivos nomes, o que nos leva à conclusão de que, no mapa da variedade regional, de Duvivier, existe apenas variedade da espécie, e não, variação regional, o que se configura um equívoco do autor, que faz uma análise sociolinguística sem se aprofundar em uma análise básica da relação língua sociedade cujas autoras do LD não ponderaram que “ouvir o comentário de um intelectual ou de um jogador de futebol sobre a questão [da língua] é exatamente a mesma coisa” (POSSENTI, Apud BAGNO, 2014a, p. 21).

A segunda questão, “Você conhece outros termos que caracterizam variação regional?”, ainda contida na primeira atividade, deveria ser formulada, portanto, após o final do capítulo, depois que o aluno tivesse uma compreensão mais abarcante do que se trata a variedade regional. Isso porque ainda surgem outras questões sobre o conteúdo em estudo.

Dando continuidade à organização didático-pedagógica da unidade, no tópico Variedades linguísticas (p.257), há uma tirinha, que aparece na sequência, em que o viking Hagar é questionado ameaçadoramente por Helga, sua esposa, que quer saber o motivo de sua ausência prolongada de casa. O diálogo presente na tirinha: (primeiro quadrinho: Helga) “Tá legal, espertinho! Onde é que você esteve?” (segundo quadrinho: Helga) “E lembre-se: se você disser uma mentira os seus chifres cairão.” (primeiro quadrinho: Hagar) “Tudo bem, eu vou contar... Eu tou atrasado porque ajudei uma velhinha a atravessar a rua...” (primeiro quadrinho: Hagar) “... E ela me deu um anel mágico que me levou a um tesouro, mas bandidos o roubaram e os persegui até a Etiópia onde um dragão...” (O melhor de Hagar, o Horrível, de Dick Browne). As autoras registram que “isso se dá porque eles têm uma relação de intimidade, o que permite a ela fazer um uso linguístico mais espontâneo, menos monitorado. Já o Hagar, que se encontra em uma situação desconfortável, de maior tensão psicológica, faz uso de um registro mais formal da língua” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 257).  Continuam: “Sentindo-se pressionado pela mulher, ele utiliza uma fórmula de linguagem mais monitorada e formal para convencê-la a acreditar em sua fantasiosa história” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 257). As ideias trazidas por elas são corroboradas pelas de Bagno, ao dizer que uma situação “pode ser de maior ou menor formalidade, de maior ou menor tensão psicológica, de maior ou menor pressão da parte do(s) interlocutor(es) e do ambiente, de maior ou menor insegurança ou autoconfiança, de maior ou menor intimidade com a tarefa comunicativa que temos a desempenhar etc.” (BAGNO. 2014a, p. 45). Isso ocorre porque somos levados a refletir antes de falar nos momentos de tensão, para dar mais credibilidade às palavras e evitarmos cair em contradições.

Considerando-se que até o momento houve uma tímida orientação no sentido de conduzir o aluno no conceito de variedade linguística, seria mais interessante uma abordagem acerca da diferença entre a linguagem “mais formal” e a “menos monitorada”, deixando o aluno mais confortável para analisar o diálogo da tirinha em questão.

Nesse mesmo tópico, Variedades linguísticas (p. 258), as autoras explicam que o uso da língua está subordinado a determinado contexto e trazem dois exemplos de construções linguísticas de maior ou menor prestígio. O primeiro, “Os senhores queiram, por gentileza, entregar-me os documentos solicitados” e o segundo, “Vamo me dando essa papelada, gente, por favor”, são reconhecidos como formas legítimas do uso da língua, caracterizando, assim, a variação linguística, que é o dizer de formas diferentes a mesma coisa. (ALVES; MARTIN, 2017, p. 258). Informam que essas variações estão presentes em todos os níveis da língua, e dão exemplos e explicações do uso da fonética/fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, lexical e estilístico-pragmática.

O tópico Variedades linguísticas e competências comunicativa (p. 259), faz referências à adequação da competência comunicativa às situações de uso. Traz uma charge em que mostra dois surfistas à beira-mar, observando as ondas. O primeiro personagem, trajando smoking e segurando uma prancha de surfe, é a caracterização da inadequação à situação, reforçada pela falta de monitoramento linguístico: “Veja que belos movimentos elípticos fazem essas ondas, meu caro amigo! Pegá-las-emos nesse instante ou mais tardiamente?” Ao seu lado, o amigo que é surfista, faz cara de poucos amigos. Deste modo, entende-se que a competência comunicativa é o cuidado que o falante deve ter em determinada situação de comunicação.   (ALVES; MARTIN, 2017, p. 260).

No tópico seguinte, Norma-padrão e normas urbanas de prestígio (ALVES; MARTIN, 2017, p. 260), elas afirmam que a variação linguística é própria da língua e, como tal, “é tão somente uma propriedade natural das línguas” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 260). Apresentam o hipérbato “Da minha infância não lembro nada” e “Não lembro nada da minha infância” como exemplo da variação sintática da língua, passando da análise linguística para a análise gramatical, pois, para Suassuna, ao se analisar um texto pelas convenções normativas, faz-se uma análise gramatical; ao se analisar pelo discurso, nesse caso é uma reflexão linguística (SUASSUNA, 2012, p. 14).

Seguindo o entendimento de que a língua é um produto sociocultural, dinâmica e heterogênea, as autoras reafirmam que a variação linguística “não é um defeito, não é um problema. É tão somente uma propriedade natural das línguas” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 260) e fazem uma breve exposição sobre a norma padrão, dizendo que é o produto da relação língua e sociedade, sendo a língua marcada por uma relação de poder, caracterizada por “[...] um conjunto de normas e regras gramaticais que devem ser seguidas pelo usuário indistintamente” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 261), e que, por não representar o uso real da língua, não admite variação.

Sobre a norma urbana de prestígio elas dizem que é aquela “usada por grupos de falantes urbanos, mais escolarizados e de maior nível socioeconômico” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 261) e ilustram a temática desse tópico com um quadro comparativo das variedades linguísticas e a norma-padrão, conforme paradigma, informações e atividades abaixo:

“Para compreender melhor esses contextos, observe o quadro a seguir, comparando suas colunas”:

Coluna 1

Coluna 2

Coluna 3

Variedades menos prestigiadas

Variedades mais prestigiadas

Norma-padrão

eu

falo

eu

falo

eu

falo

você [tu]

ele

a gente

nós

(vo)cês

eles

 

 

 

fala

 

você

ele

a gente

nós

vocês

eles

 

Fala

 

falamos

 

falam

 

tu

ele

nós

vós

eles

falas

fala

falamos

falais

falam

 

 

 

 

 

 

“Que diferença você pode notar entre as colunas? Como se diferencia a flexão dos verbos em cada uma delas? Que pronomes pessoais se mantêm e quais novos surgem?” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 261).

            Em seis linhas, as autoras explicam que as colunas 1 e 2 são duas variantes da língua, enquanto a coluna 3 é a norma padrão e “indica como as pessoas deveriam usar a língua, de acordo com a prescrição da gramática normativa” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 261). Em seguida apresentam duas questões reproduzidas abaixo:

“Você conhece alguém que atualmente se comunique dirigindo-se aos interlocutores pelo pronome ‘vós’?” e “Você e seus colegas usam sempre a forma ‘nós’ quando estão conversando?” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 261).

            Trazer o modelo idealizado de língua nessas duas perguntas é uma forma engenhosa e dissimulada de preconceito linguístico, além de que não proporcionam nenhuma reflexão sobre a temática em discussão, pois, mesmo compreendendo a língua(gem) como um produto social, heterogêneo e ordenado. “[...] as perguntas não podem tratar as diferentes abordagens da língua e da linguagem fora de seus contextos teóricos” (BAGNO, 2014a, p. 15). Apesar das perguntas propostas requererem respostas objetivas, que podem ser respondidas apenas com um “sim” ou um “não”, o pronome pessoal vós e a forma verbal correspondente entraram em desuso, sendo substituídas por vocês falam (POSSENTI, 2002, p. 66).

Ainda sobre a atividade acima, compreendemos que “falar é construir um texto, num dado momento, num determinado lugar, dentro de um contexto de fala definido, visando determinado efeito” (BAGNO, 2002, p. 98), o que denota que seria mais produtivo solicitar aos alunos a informação de quando utilizam os pronomes “nós” e “vós” em situações reais de comunicação, ampliando sua competência comunicativa e proporcionando sua aproximação das regras gramaticais. Ademais, no exemplo da conjugação verbal, faltou a análise sobre a variação morfológica, tão importante na compreensão desse fenômeno linguístico. Em seu livro Nada na língua é por acaso (2014), Bagno traz um paradigma semelhante da conjugação verbal no tópico Um roteiro para analisar os livros didáticos, fazendo a reflexão de que “essa tabela já representa uma simplificação do fenômeno, porque existem variedades estigmatizadas em que aparece o pronome tu com as marcas da conjugação de pessoa da conjugação clássica (TU FALAS, TU FALASTE, como no Maranhão e no Pará, mesmo no uso de pessoas não escolarizadas) variedades prestigiadas em que aparece o pronome tu sem as marcas da conjugação clássica (TU FALA, TU FALÔ, como no Rio grande do Sul, mesmo no uso de pessoas  altamente escolarizadas – variedades estigmatizadas em que o verbo na 1ª pessoa do plural tem morfologia própria – NÓS FALAMO, presente, NÓS FALEMO, passado) ou em que o pronome A GENTE é seguido dos verbos com essas  mesmas marcas (A GENTE FALAMO)”  (BAGNO, 2014a, p. 133).

            No tópico As perspectivas da linguística e da gramática normativa, elas apresentaram conceitos contrários entre gramáticos normativos e linguísticos aplicados sobre o uso da língua(gem). Os primeiros consideram como erros a variação linguística, enquanto os segundos defendem a variação como possíveis usos da língua.

            Por último, o tópico Gíria: uma forma de construção da identidade linguística, conceitua gíria como “uma variedade da língua criada por determinado grupo social, com o objetivo de reforçar sua identidade”. (ALVES; MARTIN, 2017, p. 264). As autoras fazem conexão da gíria com o jargão, este, uma “gíria” usada em determinadas profissões que tem muito a ver com suas rotinas profissionais. Os dois, segundo o LD, são variantes linguísticas excludentes, vez que só são usados entre pessoas de um mesmo grupo social ou profissional e não são entendidos por aqueles que não fazem parte dessas comunidades.

            Na página seguinte (p. 265), para trabalhar com esse recorte, trazem como atividade a letra da música Vaca estrela e boi Fubá, do poeta Patativa do Assaré.

“Seu dotô me dê licença pra minha história contar / Hoje eu tô na terra estranha, e bem triste o meu penar / Mas já fui muito feliz vivendo no meu lugar / Eu tinha cavalo bom e gostava de campear / E todo dia aboiava na porteira do curral. [...]”.

Observamos que as autoras trouxeram a poesia inserida nessa atividade descontextualizada da temática gíria (o que dá a entender, a princípio, de que se relacionaria com esse tema). No entanto, o poema manifesta-se em variante regional, causando um conflito de compreensão entre o que é gíria e o que é regionalismo, mesmo porque as atividades seguintes estão relacionadas à gíria, exceção para uma fotografia, na página 267, expondo diversos itens alimentícios (grãos e farinhas distintas, de difícil identificação) e uma placa de madeira entre eles com a seguinte informação: “Temos carimã”. Abaixo da fotografia, a seguinte pergunta: “Você conhece o sentido do termo ‘carimã’? Em caso negativo, levante hipóteses sobre o significado dessa palavra, levando em conta o contexto em que se encontra a placa”.

Mais uma vez, caracteriza-se como uma situação de conflito nas temáticas “gíria” e outras variantes da linguagem, pois, a exemplo do poema de Patativa do Assaré, esta atividade está na sequência do tema gíria. Existem duas possibilidades de respostas no questionamento efetuado: “sim” ou “não”. Caso a resposta seja afirmativa, não haverá ligação com os temas estudados até aqui e a pergunta encerrar-se-á com um simples “sim”, sem provocar nenhuma reflexão ao aluno. Em caso de resposta negativa, ele terá de pesquisar em outras fontes o significado da palavra “carimã” e, ao encontrá-la, constatará que se trata de uma variação semântica, cujo verbete, segundo o dicionário Houaiss: “carimã: 1 farinha de mandioca seca e fina 2 Rubrica: culinária. bolo feito de farinha de mandioca 3 Rubrica: culinária. bolo feito com massa azeda de mandioca mole, seco ao sol 4 Regionalismo: Pará. espécie de mingau de farinha de mandioca dissolvida em água e açucarada que se dá às crianças 5 praga que ataca os algodoeiros”. (HOUAISS, 2010).

No contexto em que a placa se apresenta, observa-se a existência de alguns produtos alimentícios, entre eles, três tipos de farinha, sem nenhuma especificação, donde se conclui que a palavra carimã se refere ao item 1 do dicionário Houaiss, ou seja, trata-se da “farinha de mandioca seca e fina”, portanto, por ser carimã uma palavra que exige um contexto para formar sentido, e as gírias são variedades linguísticas usadas em determinado grupo social,  essa atividade,  em vez de causar reflexão, poderá causar confusão no estudante, pois as questões seguintes se relacionam ao tópico gíria.

As demais atividades seguem a linha de provas de vestibulares e concursos. São todas questões objetivas requerendo apenas uma resposta como correta, de uma sequência de cinco alternativas.

 

           

6.    COMENTÁRIOS FINAIS

 

Finalizando a nossa análise do livro didático Veredas da Palavra, das autoras Roberta Hernandes Alves e Vima Lia Martim, podemos afirmar que o referido livro trata a variação linguística de maneira superficial e em alguns momentos de forma equivocada, não se aprofundando no conteúdo e ignorando a pluralidade de línguas existentes no país, como também ficaram de fora conceitos importantes para a compreensão da língua(gem) como fator social a exemplo da assimilação, que é a “força que tenta fazer com que dois sons diferentes, mas com algum parentesco, se tornem iguais, semelhantes” (BAGNO, 2014b, p. 77) como é o caso de se dizer falano em vez de falando e a abordagem sobre “a eliminação das marcas do plural redundantes” (BAGNO, 2014b, p. 52), que é a concordância de número.

O referido livro didático limita-se apenas a interpretações errôneas de alguns textos, como também fazem uma brevíssima análise das variedades prestigiadas, evidenciando-se o desinteresse em levar o aluno a uma análise mais profunda da temática proposta e essa superficialidade na abordagem da sociolinguística talvez seja apenas “para cumprir as exigências do Ministério da Educação e poder entrar na lista das obras que vão ser compradas e distribuídas” (BAGNO, 2014a, p.135).  

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALVES, Roberta Hernandes; MARTIN, Vima Lia. Veredas da palavra, manual do professor, vol.1, p. 256 a 268. São Paulo: Ática. 2017.

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parabólica. 2014a.

___________. A Língua de Eulália: novela linguística. São Paulo: Contexto. 2014b.

___________. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola. 1999.

HOUAISS. Dicionário eletrônico. 2010.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado de Letras. 1996.

SUASSUNA, Lívia. Ensino de análise linguística: situando a discussão. In: SILVA, Alexsandro; PESSOA, Ana Cláudia, LIMA, Ana (Org.). Ensino de gramática: reflexões sobre a língua portuguesa na escola, p. 11 a 27. Belo Horizonte: Autêntica. 2012.

Site:

LOBATO, Monteiro. A onda verde, p. 183/184. São Paulo: Monteiro Lobato. 1922. Baixado de: https://pt.scribd.com/doc/32173526/A-Onda-Verde-Monteiro-Lobato

Visitado em 15/07/2018.

 

 

 

 

 

 

 

 

O texto e o contexto

O texto e o contexto. Ou a fúria do som e do silêncio da semântica discursiva.

Estou sem hora;
Estou senhora;
Estou, senhora.
Dedico àqueles escribas que ignoram que, ao redor do eu, existem o nós e os nós da comunicação, cujo plural ao quadrado nunca será nozes.