Benito Carlos Gomes F. do Nascimento*
Pedro Costa Pereira*
Ronaldo Antonio Torres Cruz*
Roseane Elias dos Santos*
1. RESUMO
O
presente artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica de fontes específicas
da área de sociolinguística e de projetos integradores IV, e tem como objetivo
refletir e discutir o contributo que as autoras
Roberta Hernandes Alves e Vima Lia Martim oferecem para a compreensão da
sociolinguística e da gramática do livro didático do 1º ano do Ensino
Médio, Veredas
da Palavra. Elas dedicam um capítulo
inteiro explorando a questão das variações linguísticas e do preconceito
linguístico, o que nos permitiu dialogar com os autores Marcos Bagno, Sírio Possenti
e Lívia Suassuna e trazer à luz da reflexão a abordagem dos fenômenos
linguísticos e os significados que assumem em diferentes contextos regionais e
sociais. Observamos que o assunto abordado no livro didático não foi suficiente
para trabalhar a variação linguística de maneira que alunos e professores
tivessem um nível razoável de compreensão.
Palavras-chave: Sociolinguística. Projetos integradores
IV. Gramática. Livro didático.
2. INTRODUÇÃO
Monteiro Lobato,
no início da terceira década do século vinte, escreveu que “A língua é um meio
de expressão. Modifica-se sempre no sentido de aumentar o poder da expressão. A
variedade de coisas novas que tivemos necessidade de expressar, num mundo novo
como o Brasil, forçou e força no povo um surto copiosíssimo de vocábulos”
(LOBATO, 1922, p. 184). Adepto do movimento modernista que se insurgiu contra a
ditadura da gramática, Lobato chamava a atenção para a miscigenação presente na
nossa língua desde o dia em que a esquadra de Cabral aportou no sul da Bahia.
Quase cem anos
depois que Lobato escreveu esse artigo, apesar da evolução da língua(gem) em
ritmo acelerado, apesar da revolução causada pela nanotecnologia, a nossa
gramática normativa continua atrelada às âncoras dos navios dos colonizadores,
tecendo loas à nossa unidade gramatical. A linguística aplicada há décadas que
vem investigando a língua como fenômeno heterogêneo e variável, porém “numa
comparação com a produção bibliográfica sobre linguística textual, letramento,
leitura, escrita, gêneros textuais, análise do discurso etc., a gente logo
percebe que são poucos os títulos que abordam especificamente a variação
linguística” (BAGNO, 2014a, p. 29).
Fazendo um passeio
na história recente da educação no Brasil, veremos que até a década de 1960 as
escolas públicas eram em número reduzido e se concentravam nas cidades, cujas
vagas eram destinadas, em sua maioria, aos estudantes oriundos da classe média.
O desenvolvimento industrial em ritmo acelerado, a partir de meados dos anos
1960, aumentou o êxodo rural, causando o crescimento desordenado dos grandes
centros urbanos e graves consequências sociais. Era preciso repensar a
educação, então foram construídas novas escolas para acolher os filhos dos
deserdados sociais e isso resultou no desprestígio total do ensino público. A
precariedade tornou-se visível: salas superlotadas, prédios mal construídos,
material de uso didático insuficiente e professores mal pagos e mal formados.
Esse é o perfil da nova escola construída a partir da tomada de poder pelos
militares. A isso, chamaram de “democratização” do ensino no Brasil, o aumento
quantitativo em detrimento do qualitativo. (BAGNO, 2014a, p. 30, 31).
Os frequentadores
da escola pública antes da democratização eram, em sua maioria, falantes das
variedades linguísticas urbanas, usuários de uma prática mais formal da
linguagem. Os professores eram oriundos da classe média que tinham o hábito da
leitura e conhecimento de uma língua estrangeira, sobretudo o francês,
considerada uma língua de prestígio na época. E essa foi a realidade encontrada
pelos alunos egressos da classe pobre ou miserável. Os materiais didáticos eram
insuficientes ou conflitantes com a diversificação sociolinguística,
sociocultural e socioeconômica. A formação docente também não estava preparada
para lidar com os novos desafios. A variação linguística, em vez de ser tratada
como “a língua em seu estado permanente de transformação, de fluidez e de
instabilidade” (BAGNO, 2014a, p. 38), era tachada como erro gramatical do falante. Gerações depois da “democratização” do
ensino, aqueles falantes de variedades desprestigiadas passaram a ocupar a
carreira de docente e com isso as construções gramaticais consideradas erradas
pela norma-padrão também invadiram as salas de aula na fala dos professores, o
que levou a linguística aplicada a concentrar suas pesquisas nas variedades
linguísticas. (BAGNOa, 2014, p. 32 e
33).
A atividade
linguística é aquela praticada pelos falantes nas suas comunidades, cuja
finalidade é servir como instrumento de interação social. Sendo usuário dessa
prática linguística, o estudante leva-a para a sala de aula e geralmente sofre
o preconceito e os professores se sentem despreparados para lidar com a
situação, pois a sociolinguística é praticamente ignorada pelos autores dos
livros didáticos, que privilegiam a norma-culta em detrimento da variação
linguística. “A escrita, a literatura, e a escola são instituições eminentemente
sociais, são invenções culturais, criações artificiais e muito recentes na
história da humanidade” (BAGNO, 2014a, p. 35), portanto, são fatores instáveis
e a língua está sempre se reinventando, e a padronização sem exceção da regra é
uma idealização em descompasso com a evolução linguística.
Nos PCN de 1997, o
Ministério da Educação finalmente reconheceu as variedades dialetais dos
falantes brasileiros e recomenda que o preconceito linguístico seja combatido
na escola (BAGNO, 2014, p. 27). Isso foi um grande passo na mudança da
concepção de ensino, porém é preciso vencer “a resistência das pessoas muito
apegadas às concepções antigas e a falta de formação adequada dos professores
[...]” (BAGNO, 2014a, p. 28). A consequência disso é que a variação linguística
não é tratada pelos docentes conforme determinada nos PCN, principalmente por
falta de um aporte teórico razoável nos livros didáticos de língua portuguesa.
Diante do exposto,
o presente artigo se propõe a analisar como o livro didático apresenta as
variações linguísticas e a gramática internalizada, descrevendo os fenômenos
linguísticos nos campos morfossintáticos e léxico-semânticos, ou seja, como a
palavra se expressa e os significados que assume em diferentes contextos
regionais.
3. DIALOGANDO COM A TEORIA
Trazemos alguns conceitos
importantes para a compreensão das variações linguísticas e gramaticais
teorizadas por Marcos Bagno, Sírio Possenti e Lívia Suassuna na análise do LD Veredas da palavra, considerando que
apenas esse recorte teórico não será suficiente para a compreensão da
complexidade dessa abordagem temática.
Iniciaremos abordando a
heterogeneidade das línguas que, na concepção dos sociolinguistas, é múltipla,
variável, instável e está sempre em desconstrução e reconstrução. Ao contrário
da norma-padrão, que é idealizada como um produto homogêneo, a língua é um meio
de interação social e em constante processo de mudanças (BAGNO, 2014a, p.36).
A colonização portuguesa usou
a violência como ferramenta de dominação cultural, principalmente a
língua(gem). Mas o português que ficou no litoral ou que adentrou o interior
perdeu sua originalidade na diversidade linguística praticada pelos índios,
pelos negros vindos da África e por outros invasores, tais como, franceses e
holandeses. A lição que podemos tirar dessa miscigenação linguística é que não
existem línguas estáveis. A linguagem é dinâmica e está sempre em processo de
mutação. O português, que era latim, é um exemplo desse processo mutante. A
carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal descrevendo o descobrimento usa
uma linguagem diferenciada da linguagem atual. Por sua vez, o latim não foi a
língua falada no advento do Pecado Original. Resultou das mutações de outras
línguas e também se modificou tanto que dela nasceram outras línguas, a exemplo
do francês, italiano, espanhol, além do próprio português (POSSENTI, 2002, p.
37).
“A análise linguística é uma
prática mais ampla que envolve a gramática”. Os
assuntos envolvendo o dígrafo ou às estruturas da língua ou à ortografia são questões
consideradas gramaticais, ao passo que a compreensão de um texto é uma questão
linguística (SUASSUNA, 2012, p. 14). Em ambos os casos, “o fundamental no
estudo da gramática/análise linguística é contemplar a variedade de recursos
expressivos postos à disposição do falante/escritor para a construção de
sentido” (SUASSUNA, 2012, p. 15).
Na análise
linguística há três distinções de atividades linguísticas: atividade
linguística, epilinguística e metalinguística, porém nos ateremos apenas à
atividade linguística, que é a atividade de comunicação que o falante pratica
na sua comunidade e o LD deve abordar em condições adequadas de maneira que
promova a interação social do aluno (SUASSUNA, 2012, p. 16).
4. METODOLOGIA
Este trabalho se configura e
se caracteriza como uma pesquisa de natureza qualitativa, que tem como objetivo
compreender como se manifesta a abordagem das variações linguísticas a partir
das observações subjetivas das narrativas escritas e suas particularidades no
livro didático (LD) cuja materialização das concepções teóricas se concretizou
na análise do corpus, do LD, Veredas da
Palavra, das autoras Roberta Hernandes
Alves e Vima Lia Martim, editora Ática. Da obra, selecionamos o LD do primeiro
ano Ensino Médio que aborda esses dois fenômenos linguísticos. O livro didático
está organizado em cinco grandes unidades estruturadas em vinte capítulos.
Analisamos o
capítulo 15 que está organizado em tópicos, cujas abordagens estão elencadas da
seguinte forma: a) Variedades linguísticas; b) Variedades linguísticas e
competência comunicativa; c) Norma-padrão e normas urbanas de prestígio; d) As
perspectivas da linguística e da gramática normativa; e) Gíria: uma forma de
construção da identidade linguística; f) Preconceito linguístico.
Trazemos à análise
os tópicos “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, ou seja, os que estão vinculados às
variações linguísticas e estabelecemos relações desses tópicos com os
enunciados dos teóricos Bagno, Possenti, Suassuna, no que se referem à sociolinguística e à gramática.
O procedimento metodológico teve seu início com a análise
de elementos obtidos a partir da pesquisa bibliográfica. Depois desse processo,
houve o diálogo entre a literatura acumulada e as informações adquiridas por
meio da observação do material selecionado, com vistas a análises abarcantes.
Por fim, depois das discussões, vieram as considerações finais.
5. PONDERANDO O TEMA PROPOSTO NO CAPÍTULO 15
As autoras abrem o
capítulo 15 (p. 256) com o texto intitulado de Mapa da tangerina, extraído do livro de crônicas Percatempo, tudo que faço quando não há o
que fazer, de Gregório Duvivier.
Esse texto traz as
palavras tangerina, poncã, mexerica, bergamota
associadas ao mapa das regiões brasileiras, e transmite a ideia de que são
variantes regionais, ou seja, vários nomes para uma mesma fruta, a tangerina. As
autoras do LD também entenderam o Mapa
da tangerina dessa mesma forma e trazem duas questões relacionadas às
variações que a língua(gem) sofre de região para região. Na primeira, elas
direcionam o olhar do aluno para as diferentes formas de se falar uma mesma
palavra em lugares distintos. Na segunda, perguntam sobre os conhecimentos dos estudantes
acerca da variação regional.
Entendemos que esse exemplo específico do LD
não se aplica à variante regional, uma vez que não se trata de dizer diferente
a mesma coisa, mas de se nomear diferente as espécies da fruta tangerina. Nossos argumentos são
fortalecidos no enunciado de Bagno: “a definição mais simples de variante é a
de ‘cada uma das formas diferentes de se dizer a mesma coisa”’ (BAGNO, 2014a,
p. 50). Um exemplo de variante regional é a mandioca, da família Manihot
palmata, diferente da Manihot esculenta que só serve para fazer farinha (HOUAISS, 2010), em parte do Nordeste é conhecida como macaxeira, na Bahia e em outros estados do Sudeste, aipim, e na Região Sul, mandioquinha. Assim, temos vários nomes
para a mesma coisa, o que podemos dizer, nesse caso, que há uma variação dialetal,
“um termo usado há séculos, desde a Grécia antiga, para designar o modo
característico de uso da língua num determinado lugar, região, província etc.”
(BAGNO, 2014a, p. 48). A tangerina em
questão tem o nome científico Citrus
reticulat, a mexerica Citrus
deliciosa, a bergamota Citrus
aurantium e a poncã, Citrus reticulata, uma variedade de
tangerina grande e de casca frouxa, originária do Japão (HOUAISS, 2010). Essa
última é vendida nos supermercados como laranja poncã; as demais, podemos encontrá-las
expostas na mesma gôndola de frutas dos supermercados com os seus respectivos
nomes, o que nos leva à conclusão de que, no mapa da variedade regional, de Duvivier, existe apenas variedade da espécie, e
não, variação regional, o que se configura um equívoco do autor, que faz uma
análise sociolinguística sem se aprofundar em uma análise básica da relação
língua sociedade cujas autoras do LD não ponderaram que “ouvir o comentário de
um intelectual ou de um jogador de futebol sobre a questão [da língua] é
exatamente a mesma coisa” (POSSENTI, Apud BAGNO, 2014a, p. 21).
A segunda questão,
“Você conhece outros termos que caracterizam variação regional?”, ainda contida
na primeira atividade, deveria ser formulada, portanto, após o final do
capítulo, depois que o aluno tivesse uma compreensão mais abarcante do que se
trata a variedade regional. Isso porque ainda surgem outras questões sobre o
conteúdo em estudo.
Dando continuidade
à organização didático-pedagógica da unidade, no tópico Variedades linguísticas (p.257), há uma tirinha, que aparece na
sequência, em que o viking Hagar é
questionado ameaçadoramente por Helga, sua esposa, que quer saber o motivo de
sua ausência prolongada de casa. O diálogo presente na tirinha: (primeiro
quadrinho: Helga) “Tá legal, espertinho!
Onde é que você esteve?” (segundo quadrinho: Helga) “E lembre-se: se você disser uma mentira os seus chifres cairão.” (primeiro
quadrinho: Hagar) “Tudo bem, eu vou
contar... Eu tou atrasado porque ajudei uma velhinha a atravessar a rua...”
(primeiro quadrinho: Hagar) “... E ela me
deu um anel mágico que me levou a um tesouro, mas bandidos o roubaram e os
persegui até a Etiópia onde um dragão...” (O melhor de Hagar, o Horrível,
de Dick Browne). As autoras registram que “isso se dá porque eles têm uma
relação de intimidade, o que permite a ela fazer um uso linguístico mais
espontâneo, menos monitorado. Já o Hagar, que se encontra em uma situação
desconfortável, de maior tensão psicológica, faz uso de um registro mais formal
da língua” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 257). Continuam: “Sentindo-se pressionado pela
mulher, ele utiliza uma fórmula de linguagem mais monitorada e formal para
convencê-la a acreditar em sua fantasiosa história” (ALVES; MARTIN, 2017, p.
257). As ideias trazidas por elas são corroboradas pelas de Bagno, ao dizer que
uma situação “pode ser de maior ou menor formalidade, de maior ou menor tensão
psicológica, de maior ou menor pressão da parte do(s) interlocutor(es) e do
ambiente, de maior ou menor insegurança ou autoconfiança, de maior ou menor
intimidade com a tarefa comunicativa que temos a desempenhar etc.” (BAGNO. 2014a,
p. 45). Isso ocorre porque somos levados a refletir antes de falar nos momentos
de tensão, para dar mais credibilidade às palavras e evitarmos cair em
contradições.
Considerando-se
que até o momento houve uma tímida orientação no sentido de conduzir o aluno no
conceito de variedade linguística, seria mais interessante uma abordagem acerca
da diferença entre a linguagem “mais formal” e a “menos monitorada”, deixando o
aluno mais confortável para analisar o diálogo da tirinha em questão.
Nesse mesmo tópico,
Variedades linguísticas (p. 258), as
autoras explicam que o uso da língua está subordinado a determinado contexto e
trazem dois exemplos de construções linguísticas de maior ou menor prestígio. O
primeiro, “Os senhores queiram, por gentileza, entregar-me os documentos
solicitados” e o segundo, “Vamo me dando essa papelada, gente, por favor”, são
reconhecidos como formas legítimas do uso da língua, caracterizando, assim, a
variação linguística, que é o dizer de formas diferentes a mesma coisa. (ALVES;
MARTIN, 2017, p. 258). Informam que essas variações estão presentes em todos os
níveis da língua, e dão exemplos e explicações do uso da fonética/fonologia,
morfologia, sintaxe, semântica, lexical e estilístico-pragmática.
O tópico Variedades linguísticas e competências
comunicativa (p. 259), faz referências à adequação da competência
comunicativa às situações de uso. Traz uma charge em que mostra dois surfistas
à beira-mar, observando as ondas. O primeiro personagem, trajando smoking e segurando uma prancha de
surfe, é a caracterização da inadequação à situação, reforçada pela falta de
monitoramento linguístico: “Veja que belos movimentos elípticos fazem essas
ondas, meu caro amigo! Pegá-las-emos nesse instante ou mais tardiamente?” Ao
seu lado, o amigo que é surfista, faz cara de poucos amigos. Deste modo,
entende-se que a competência comunicativa é o cuidado que o falante deve ter em
determinada situação de comunicação. (ALVES; MARTIN, 2017, p. 260).
No tópico seguinte,
Norma-padrão e normas urbanas de
prestígio (ALVES; MARTIN, 2017, p. 260), elas afirmam que a variação
linguística é própria da língua e, como tal, “é tão somente uma propriedade
natural das línguas” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 260). Apresentam o hipérbato “Da
minha infância não lembro nada” e “Não lembro nada da minha infância” como
exemplo da variação sintática da língua, passando da análise linguística para a
análise gramatical, pois, para Suassuna, ao se analisar um texto pelas
convenções normativas, faz-se uma análise gramatical; ao se analisar pelo
discurso, nesse caso é uma reflexão linguística (SUASSUNA, 2012, p. 14).
Seguindo o
entendimento de que a língua é um produto sociocultural, dinâmica e heterogênea,
as autoras reafirmam que a variação linguística “não é um defeito, não é um
problema. É tão somente uma propriedade natural das línguas” (ALVES; MARTIN,
2017, p. 260) e fazem uma breve exposição sobre a norma padrão, dizendo que é o
produto da relação língua e sociedade, sendo a língua marcada por uma relação
de poder, caracterizada por “[...] um conjunto de normas e regras gramaticais
que devem ser seguidas pelo usuário indistintamente” (ALVES; MARTIN, 2017, p.
261), e que, por não representar o uso real da língua, não admite variação.
Sobre a norma
urbana de prestígio elas dizem que é aquela “usada por grupos de falantes
urbanos, mais escolarizados e de maior nível socioeconômico” (ALVES; MARTIN,
2017, p. 261) e ilustram a temática desse tópico com um quadro comparativo das
variedades linguísticas e a norma-padrão, conforme paradigma, informações e
atividades abaixo:
“Para compreender
melhor esses contextos, observe o quadro a seguir, comparando suas colunas”:
Coluna 1 |
Coluna 2 |
Coluna 3 |
|||
Variedades
menos prestigiadas |
Variedades mais prestigiadas |
Norma-padrão |
|||
eu |
falo |
eu |
falo |
eu |
falo |
você [tu] ele a gente nós (vo)cês eles |
fala |
você ele a gente nós vocês eles |
Fala falamos falam |
tu ele nós vós eles |
falas |
fala |
|||||
falamos |
|||||
falais |
|||||
falam |
“Que diferença você pode notar entre as colunas? Como se
diferencia a flexão dos verbos em cada uma delas? Que pronomes pessoais se
mantêm e quais novos surgem?” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 261).
Em seis linhas,
as autoras explicam que as colunas 1 e 2 são duas variantes da língua, enquanto
a coluna 3 é a norma padrão e “indica como as pessoas deveriam usar a língua,
de acordo com a prescrição da gramática normativa” (ALVES; MARTIN, 2017, p. 261). Em seguida apresentam duas questões reproduzidas abaixo:
“Você conhece alguém que atualmente se comunique dirigindo-se aos
interlocutores pelo pronome ‘vós’?” e “Você e seus colegas usam sempre a forma
‘nós’ quando estão conversando?” (ALVES; MARTIN,
2017, p. 261).
Trazer o modelo
idealizado de língua nessas duas perguntas é uma forma engenhosa e dissimulada
de preconceito linguístico, além de que não proporcionam nenhuma reflexão sobre
a temática em discussão, pois, mesmo compreendendo a língua(gem) como um
produto social, heterogêneo e ordenado. “[...] as perguntas não podem tratar as
diferentes abordagens da língua e da linguagem fora de seus contextos teóricos”
(BAGNO, 2014a, p. 15). Apesar das perguntas propostas requererem respostas
objetivas, que podem ser respondidas apenas com um “sim” ou um “não”, o pronome
pessoal vós e a forma verbal
correspondente entraram em desuso, sendo substituídas por vocês falam (POSSENTI,
2002, p. 66).
Ainda sobre a atividade acima, compreendemos que “falar é
construir um texto, num dado momento, num determinado lugar, dentro de um
contexto de fala definido, visando determinado efeito” (BAGNO, 2002, p. 98), o
que denota que seria mais produtivo solicitar aos alunos a informação de quando
utilizam os pronomes “nós” e “vós” em situações reais de comunicação, ampliando
sua competência comunicativa e proporcionando sua aproximação das regras
gramaticais. Ademais, no exemplo da conjugação verbal, faltou a análise sobre a
variação morfológica, tão importante na compreensão desse fenômeno linguístico.
Em seu livro Nada na língua é por acaso
(2014), Bagno traz um paradigma semelhante da conjugação verbal no tópico Um roteiro para analisar os livros
didáticos, fazendo a reflexão de
que “essa tabela já representa uma simplificação do fenômeno, porque existem
variedades estigmatizadas em que aparece o pronome tu com as marcas da
conjugação de pessoa da conjugação clássica (TU FALAS, TU FALASTE, como no
Maranhão e no Pará, mesmo no uso de pessoas não escolarizadas) variedades
prestigiadas em que aparece o pronome tu sem as marcas da conjugação clássica (TU
FALA, TU FALÔ, como no Rio grande do Sul, mesmo no uso de pessoas altamente escolarizadas – variedades
estigmatizadas em que o verbo na 1ª pessoa do plural tem morfologia própria –
NÓS FALAMO, presente, NÓS FALEMO, passado) ou em que o pronome A GENTE é
seguido dos verbos com essas mesmas
marcas (A GENTE FALAMO)” (BAGNO, 2014a,
p. 133).
No tópico As perspectivas da linguística e da gramática
normativa, elas apresentaram conceitos contrários entre gramáticos
normativos e linguísticos aplicados sobre o uso da língua(gem). Os primeiros
consideram como erros a variação linguística, enquanto os segundos defendem a
variação como possíveis usos da língua.
Por último, o
tópico Gíria: uma forma de construção da
identidade linguística, conceitua gíria como “uma variedade da língua
criada por determinado grupo social, com o objetivo de reforçar sua
identidade”. (ALVES; MARTIN, 2017, p. 264). As autoras fazem
conexão da gíria com o jargão, este, uma “gíria” usada em determinadas
profissões que tem muito a ver com suas rotinas profissionais. Os dois, segundo
o LD, são variantes linguísticas excludentes, vez que só são usados entre
pessoas de um mesmo grupo social ou profissional e não são entendidos por
aqueles que não fazem parte dessas comunidades.
Na
página seguinte (p. 265), para trabalhar com esse recorte, trazem como
atividade a letra da música Vaca estrela
e boi Fubá, do poeta Patativa do Assaré.
“Seu dotô me dê licença pra minha
história contar / Hoje eu tô na terra estranha, e bem triste o meu penar / Mas
já fui muito feliz vivendo no meu lugar / Eu tinha cavalo bom e gostava de
campear / E todo dia aboiava na porteira do curral. [...]”.
Observamos que as
autoras trouxeram a poesia inserida nessa atividade descontextualizada da
temática gíria (o que dá a entender, a princípio, de que se relacionaria com
esse tema). No entanto, o poema manifesta-se em variante regional, causando um
conflito de compreensão entre o que é gíria e o que é regionalismo, mesmo
porque as atividades seguintes estão relacionadas à gíria, exceção para uma
fotografia, na página 267, expondo diversos itens alimentícios (grãos e farinhas
distintas, de difícil identificação) e uma placa de madeira entre eles com a
seguinte informação: “Temos carimã”. Abaixo da fotografia, a seguinte pergunta:
“Você conhece o sentido do termo ‘carimã’? Em caso negativo, levante hipóteses
sobre o significado dessa palavra, levando em conta o contexto em que se
encontra a placa”.
Mais uma vez,
caracteriza-se como uma situação de conflito nas temáticas “gíria” e outras
variantes da linguagem, pois, a exemplo do poema de Patativa do Assaré, esta atividade
está na sequência do tema gíria. Existem
duas possibilidades de respostas no questionamento efetuado: “sim” ou “não”.
Caso a resposta seja afirmativa, não haverá ligação com os temas estudados até
aqui e a pergunta encerrar-se-á com um simples “sim”, sem provocar nenhuma
reflexão ao aluno. Em caso de resposta negativa, ele terá de pesquisar em
outras fontes o significado da palavra “carimã” e, ao encontrá-la, constatará
que se trata de uma variação semântica, cujo verbete, segundo o dicionário
Houaiss: “carimã: 1 farinha de
mandioca seca e fina 2 Rubrica:
culinária. bolo feito de farinha de mandioca 3 Rubrica: culinária. bolo feito com massa azeda de mandioca mole,
seco ao sol 4 Regionalismo: Pará.
espécie de mingau de farinha de mandioca dissolvida em água e açucarada que se
dá às crianças 5 praga que ataca
os algodoeiros”. (HOUAISS, 2010).
No contexto em que
a placa se apresenta, observa-se a existência de alguns produtos alimentícios,
entre eles, três tipos de farinha, sem nenhuma especificação, donde se conclui
que a palavra carimã se refere ao item 1 do dicionário Houaiss, ou seja,
trata-se da “farinha de mandioca seca e fina”, portanto, por ser carimã uma palavra que exige um contexto
para formar sentido, e as gírias são variedades linguísticas usadas em
determinado grupo social, essa
atividade, em vez de causar reflexão,
poderá causar confusão no estudante, pois as questões seguintes se relacionam
ao tópico gíria.
As demais
atividades seguem a linha de provas de vestibulares e concursos. São todas
questões objetivas requerendo apenas uma resposta como correta, de uma
sequência de cinco alternativas.
6. COMENTÁRIOS FINAIS
Finalizando a
nossa análise do livro didático Veredas
da Palavra, das autoras Roberta Hernandes Alves e Vima Lia Martim, podemos
afirmar que o referido livro trata a variação linguística de maneira
superficial e em alguns momentos de forma equivocada, não se aprofundando no
conteúdo e ignorando a pluralidade de línguas existentes no país, como também
ficaram de fora conceitos importantes para a compreensão da língua(gem) como
fator social a exemplo da assimilação, que é a “força que tenta fazer com que
dois sons diferentes, mas com algum parentesco, se tornem iguais, semelhantes”
(BAGNO, 2014b, p. 77) como é o caso de se dizer falano em vez de falando e
a abordagem sobre “a eliminação das marcas do plural redundantes” (BAGNO,
2014b, p. 52), que é a concordância de número.
O referido livro
didático limita-se apenas a interpretações errôneas de alguns textos, como
também fazem uma brevíssima análise das variedades prestigiadas,
evidenciando-se o desinteresse em levar o aluno a uma análise mais profunda da
temática proposta e essa superficialidade na abordagem da sociolinguística talvez
seja apenas “para cumprir as exigências do Ministério da Educação e poder
entrar na lista das obras que vão ser compradas e distribuídas” (BAGNO, 2014a,
p.135).
REFERÊNCIAS
ALVES, Roberta Hernandes; MARTIN, Vima
Lia. Veredas da palavra, manual do
professor, vol.1, p. 256 a 268. São Paulo: Ática. 2017.
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma
pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parabólica. 2014a.
___________. A Língua de Eulália: novela
linguística. São Paulo: Contexto. 2014b.
___________. Preconceito linguístico: o
que é, como se faz. São Paulo: Loyola. 1999.
HOUAISS. Dicionário eletrônico.
2010.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar
gramática na escola. São Paulo: Mercado de Letras. 1996.
SUASSUNA, Lívia. Ensino de análise linguística:
situando a discussão. In: SILVA,
Alexsandro; PESSOA, Ana Cláudia, LIMA, Ana (Org.). Ensino de gramática: reflexões sobre a língua portuguesa na escola,
p. 11 a 27. Belo Horizonte: Autêntica. 2012.
Site:
LOBATO, Monteiro. A onda verde, p.
183/184. São Paulo: Monteiro Lobato. 1922. Baixado de: https://pt.scribd.com/doc/32173526/A-Onda-Verde-Monteiro-Lobato
Visitado em 15/07/2018.