segunda-feira, 7 de outubro de 2019

A Granja dos Corações Amargurados


          Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Esse conflito filosófico, que há milhares de anos atormenta o homem na busca da consciência cósmica, instigou Clarice Lispector no seu criar literário. O ovo, a Literatura; a galinha, o seu eu narrador, a realidade transcendente no poder da criação e dos seus conflitos interiores traduzidos à baila no conto “O ovo e a galinha”, a metalinguagem metafórica das inspirações do seu fazer literário. O ovo e a galinha, o escritor e a inspiração, um não existe com a exclusão do outro.

O espetáculo A Granja dos Corações Amargurados é uma adaptação para o teatro do conto “O ovo e a galinha”, feita pelo grupo Claricena. Este grupo é formado por estudantes do curso de Teatro, Música e Dança da UFAL, e o enredo seguiu um propósito, a meu ver, um tanto confuso, aparentemente sem conectivo entre os atos, como se cada parte mantivesse independência das demais. Seria necessária a releitura da peça para melhor compreensão dessa experiência cosmo-psicodélica, onde imagens da dança se cruzam com a dramaturgia e até mesmo no surrealismo explícito na (des)construção das histórias onde um espectador desavisado poderia entender como o estereótipo do caos, tantos são os descaminhos que nos levam a pensar assim.

A nossa realidade subjetiva nos transporta à reflexão e a devanear sobre essa pergunta intrigante que deixa até os darwinistas descabelados, tamanha a complexidade existente que nem os estudos mais profundos conseguiram, até agora, decifrar: Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? A intertextualidade filosófica do conto da Clarice com esse ovo mutante e a retórica reflexiva embutida nas suas palavras, escritas, talvez, no frigir dos ovos em sua cozinha ou do ovo mal passado no seu pão, nos conduzem a vários caminhos da interrogação entre o seu dizer e o seu fazer literário, o criador e a criatura, porém, aparentemente, não indica nenhum atalho onde se possa beber da fonte onde se manifesta o momento epifânico de um Pai-Nosso rezado por um público religiosamente eclético, ou até mesmo agnóstico, durante uma encenação teatral. Também a trilha sonora de Ennio Morricone, compositor famoso pelas suas músicas em filmes tipo western, parece deslocada no tempo e no espaço do estilo clariciano.  A altura excessiva do volume das músicas abafando o diálogo, galinha (ou ovo) fumando maconha no palco, pipoca jogada na plateia emporcalhando o teatro, e a nebulosa coerência dos spots com o enredo, talvez seja uma tentativa do resgate erudito do teatro besteirol dos anos 1980, uma modalidade crítica, bem humorada, e nada filosófica da realidade brasileira. Também existe a possibilidade de que, movidos os dramaturgos da UFAL pela própria declaração da Clarice Lispector sobre a incompreensão de suas palavras nesse conto, tentaram fazer algo mais complexo no entendimento racional, apresentando ao espectador uma simbiose da metafísica com a metalinguagem ordenada.

Assim, neste questionamento milenar sobre quem veio primeiro, se o ovo ou se a galinha, o espectador comum saiu do teatro com cara de quem comeu uma omelete sem sal e sem recheio e com sabor de pastel de vento.
  




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