
o romance A
Moreninha, publicado em 1844, visto pelo lado histórico, é considerado o
primeiro romance brasileiro. Pelo lado cronológico, o primeiro romance
brasileiro foi O filho do pescador, de Teixeira e Sousa, publicado um
ano antes, mas era um romance piegas e de trama tão confusa que foi descartado
como obra literária.
Não se deve nem
se pode considerar A Moreninha como uma obra prima da literatura
brasileira, cujo enredo foi construído sem muitas surpresas para o leitor de
hoje, mas que fez muito sucesso à época do seu lançamento. Romance de estreia
de Macedo, também foi a primeira novela em folhetim no solo fértil da poesia
romântica brasileira e o autor, sem outras referências nacionais, escreve como
a pisar em campo minado do arcadismo, com recorrentes descrições da Natureza,
sem os bois dos poetas da Inconfidência, mas com “ovelhinhas” sendo tosquiadas.
A chegada da
corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, transformou sobremaneira a
paisagem carioca, que passou por um grande processo de urbanização, alimentando
os sentimentos libertários. Depois da independência, surgiu uma sociedade
consumidora constituída de aristocratas rurais, profissionais liberais e estudantes
e nesse cenário de organização de nação recém-constituída é que aporta o
romantismo brasileiro nas poesias de Gonçalves de Magalhães, em 1836.
Encerrava-se o ciclo arcádico dos Poetas da Inconfidência e o neoclassicismo, o
sentimentalismo superficial e o bucolismo cediam lugar ao subjetivismo, ao amor
intenso e à ideologia burguesa. E nesse contexto histórico nas primeiras
décadas do século XIX aportou o Romantismo no Brasil e quatro décadas depois
nasceram os romances de costumes revelando os bastidores do cotidiano carioca.
Em Notas
sobre literatura, cultura e ciências humanas, Bakhtin afirma que “A
literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do
contexto pleno de toda a cultura de uma época” (BAKHTIN, 2017, P. 11). Partindo-se
dessa premissa, Almeida inaugura superficialmente o romance de costumes da
sociedade carioca, focando sua narrativa no comportamento de jovens estudantes
que mal deixaram a puberdade, como é o caso da protagonista que deu o título ao
romance. Com idade indefinida pelo narrador, ora com quatorze, ora com quinze
anos, Carolina, a heroína, mostra-se a mais madura entre todos, apesar de ser a
mais nova e parecer viver isolada em uma ilha não identificada pelo autor. Não
há relatos sobre sua convivência com o mundo
exterior, sobre seu conhecimento de mundo ou até mesmo das suas relações
sociais fora do contexto familiar. É surpreendente como uma garota de quatorze
ou quinze anos (a idade é indefinida pelo autor), que vive isolada em uma ilha
e ainda brinca de boneca, tenha a desenvoltura e maturidade como Carolina tem.
A trama começa com algo inusitado e fora de sentido:
uma aposta entre dois estudantes, Filipe e Augusto, e quem perdesse deveria
escrever um livro. O motivo da aposta: Augusto, até então um namorador
descompromissado com os sentimentos, deveria namorar uma das duas primas de
Filipe, ou até mesmo a sua irmã, Carolina, e perderia a aposta caso voltasse da
ilha suspirando ais de amores. Apesar de adolescentes e velhos estudantes de
medicina, tal aposta mostra total imaturidade desses jovens, ou uma melhor
argumentação do narrador para adentrar o enredo piegas do romantismo e levar o
leitor a navegar sobre os fios de uma trama despropositada. Afinal, qual ou
quais os motivos que levaram o Filipe a apostar suas primas ou até mesmo a sua
irmã? Seriam os jovens aristocratas estudantes do início do Império tão
abobados assim?
A
Literatura difere dos outros gêneros textuais devido a três princípios na
estética literária que deve ser observado pelo autor: a função total, a função
social e a função ideológica, segundo Antonio Cândido, em sua obra “Literatura
e sociedade”.
“A função total deriva de um sistema simbólico, que
transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos específicos e
adequados.” (CÂNDIDO, 2014, p. 55).
Quanto mais universal e atemporal, mais é a grandeza de uma obra. É a riqueza
da construção literária que leva o leitor a se perguntar: E mudou alguma coisa
hoje?, tal qual os sermões do Padre Vieira, que entrou para a literatura clássica
pela sua atemporalidade.
“A função social comporta o papel que a obra
desempenha no estabelecimento de relações sociais, na satisfação de
necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma certa
ordem na sociedade.” (CÂNDIDO, 2014,
p. 55). É a função social o que estabelece a empatia no leitor e o desperta
para conscientização de uma cultura plural e universal.
A função ideológica “Decorre da própria natureza da
obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de
expressão, coroada pela comunicação” (CÂNDIDO, 2014, p. 56). Em outras
palavras, a função ideológica é aquilo que o leitor entende como a mensagem
consciente e não sectária que o autor deixa a entender em sua obra.
Analisemos A Moreninha sob o ponto de vista da
função total: há nesse romance a universalidade ou atemporalidade argumentativa
que leve o leitor a viajar em quimeras romanescas? Há aquela imanência, que
faça o leitor sentir a ansiedade de chegar ao ponto final e depois passar horas
em delongas, imaginando-se personagem da história? É óbvio que não. Narrado
linearmente na terceira pessoa, o narrador, que também faz vez de narratário,
perde-se em descrições enfadonhas do ambiente levando o leitor à tentação de
pular o parágrafo ou abandonar a leitura. Ademais, a passagem que gerou a
“ideia feliz” de Filipe em mandar o protagonista usar o gabinete das meninas
para poder olhar-se no espelho, sentir os cremes e o perfume, não faz nenhum
sentido, a não ser o de colocar Augusto debaixo da cama e ouvir as confidências
das garotas para usá-las mais tarde contra as garotas, no episódio bizarro da
fada da fonte. Normal seria a curiosidade de Augusto, um adolescente, sentir a
intimidade das primas de Filipe. O autor usou de uma argumentação infantil,
mostrando a sua falta de criatividade para penetrar nos segredos femininos.
Agora analisemos a obra pela função social: que papel
desempenhou o romance que pudesse estabelecer relações sociais ou até mesmo
mudanças na ordem da sociedade? Certamente o leitor terá dificuldades em
encontrar uma resposta. Focando mais no caráter das personagens do que na
construção do enredo, o autor trata com superficialidade os costumes do seu
tempo, limitando-se a escancarar a bagunça em um quarto de estudante e a trazer
à baila o comportamento instável e até mesmo volúvel de jovens adolescentes,
bem citadas por Bosi como “[...] as galhofas de estudantes vadios” (BOSI,
2017, p.137).
A pobreza literária é tanta que levou Machado de Assis
a fazer algumas desconsiderações a respeito da literariedade das obras de
Macedo ao resenhar O Culto do Dever:
“Se a missão do romancista fosse copiar os fatos, tais
quais eles se dão na vida, a arte era uma coisa inútil: a memorização
substituiria a imaginação” (BOSI,
2017, p. 138).
Bosi não perdoa em seus comentários: “O defeito
estava em Macedo, sub-romancista pela pobreza da fantasia, sub-romântico pela
míngua de sentimentos” (BOSI, 2017, p. 138).
Quanto à função ideológica não carece queimar-se os
neurônios em busca de algo que não existe. Passa ao largo das ideologias ou até
mesmo de alguma mensagem incluída nas entrelinhas, a não ser de quer todo
adolescente é igual, independente do século. Até mesmo a figura de um pai
ideologicamente comprometida com a boa ação praticada pelo filho ao socorrer um
velho enfermo, se desfaz completamente na súbita reação desse mesmo pai que põe
o filho prisioneiro para que o mesmo não cumprisse seu compromisso firmado com
os ilhéus. Ora, totalmente desnecessário esse capítulo e o romance teria passado
muito bem sem esse desvio ideológico do pai, que depois passou a ser o mesmo
pai zeloso de antes.
Buscando socorro em “Os gêneros literários”, de Yves
Stalloni, que justificasse uma réstia de literariedade no romance em análise,
encontramos a “forma” como uma das componentes da narrativa: “Os
acontecimentos só podem ser narrados por meio de um código, de linguagem
escrita ou oral, limitando-se a literatura a levar em conta o escrito. Por meio
desse código, o enunciado narrativo transforma-se em texto submetido, ele
mesmo, às exigências e às leis da estilística” (STALLONI, 2001, p. 86).
Considerando-se a estilística como recurso gramatical, é flagrante a pobreza na
construção de figuras de linguagem, próprias da estilística, como as metáforas,
metonímias, antífrases, etc., etc., etc.; considerando-se a estilística como
“estilo pessoal” do escritor, não enxergamos nenhum traço marcante de sua
personalidade nas obras que sucederam A Moreninha, pelo contrário, Alfredo
Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira, não poupa palavras
na crítica ao autor, colocando-o no pedestal dos medíocres: “Tendo
atravessado todo o Romantismo, pois escreveu desde os anos de 40 aos de 70, nem
por isso nota-se-lhe progresso na técnica literária ou na compreensão do que
deveria ser um romance” (BOSI, 2017, p. 137).
Mas nem tudo ficou perdido no romance. Ele segue à
risca a estruturação do romantismo no que concerne ao drama e à superação do
herói de todos os problemas para, enfim, viver seu final feliz. Também deve se
destacar o recurso não usual naqueles tempos: o uso da metalinguagem na
construção da história do romance.
Concluindo, podemos afirmar que A Moreninha está
mais para documento histórico do nascimento do romance brasileiro e menos para
o estudo sociológico dos cariocas vinte anos depois do advento do Império, e
menos ainda para uma obra literária.
Referências
bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e
ciências humanas. Org. BEZERRA, Paulo. São Paulo: Editora 34,
2017.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
brasileira. 51 ed. São Paulo: Cultrix, 2017.
CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 13
ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul. 2014.
MACEDO, Joaquim Manoel. A moreninha. Porto
Alegre: L&PM. 2016.
NICOLA, José. Literatura brasileira – das
origens aos nossos dias. 15 ed. São Paulo: Editora Scipione, 1999.
STALLONI,
Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel. 2001
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