sábado, 1 de janeiro de 2022

Análise crítica do romance A Moreninha, de Joaquim M. de Macedo

 romance A Moreninha, publicado em 1844, visto pelo lado histórico, é considerado o primeiro romance brasileiro. Pelo lado cronológico, o primeiro romance brasileiro foi O filho do pescador, de Teixeira e Sousa, publicado um ano antes, mas era um romance piegas e de trama tão confusa que foi descartado como obra literária.

 Não se deve nem se pode considerar A Moreninha como uma obra prima da literatura brasileira, cujo enredo foi construído sem muitas surpresas para o leitor de hoje, mas que fez muito sucesso à época do seu lançamento. Romance de estreia de Macedo, também foi a primeira novela em folhetim no solo fértil da poesia romântica brasileira e o autor, sem outras referências nacionais, escreve como a pisar em campo minado do arcadismo, com recorrentes descrições da Natureza, sem os bois dos poetas da Inconfidência, mas com “ovelhinhas” sendo tosquiadas.

 A chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, transformou sobremaneira a paisagem carioca, que passou por um grande processo de urbanização, alimentando os sentimentos libertários. Depois da independência, surgiu uma sociedade consumidora constituída de aristocratas rurais, profissionais liberais e estudantes e nesse cenário de organização de nação recém-constituída é que aporta o romantismo brasileiro nas poesias de Gonçalves de Magalhães, em 1836. Encerrava-se o ciclo arcádico dos Poetas da Inconfidência e o neoclassicismo, o sentimentalismo superficial e o bucolismo cediam lugar ao subjetivismo, ao amor intenso e à ideologia burguesa. E nesse contexto histórico nas primeiras décadas do século XIX aportou o Romantismo no Brasil e quatro décadas depois nasceram os romances de costumes revelando os bastidores do cotidiano carioca.

 Em Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas, Bakhtin afirma que “A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época” (BAKHTIN, 2017, P. 11). Partindo-se dessa premissa, Almeida inaugura superficialmente o romance de costumes da sociedade carioca, focando sua narrativa no comportamento de jovens estudantes que mal deixaram a puberdade, como é o caso da protagonista que deu o título ao romance. Com idade indefinida pelo narrador, ora com quatorze, ora com quinze anos, Carolina, a heroína, mostra-se a mais madura entre todos, apesar de ser a mais nova e parecer viver isolada em uma ilha não identificada pelo autor. Não há relatos sobre sua convivência com o mundo exterior, sobre seu conhecimento de mundo ou até mesmo das suas relações sociais fora do contexto familiar. É surpreendente como uma garota de quatorze ou quinze anos (a idade é indefinida pelo autor), que vive isolada em uma ilha e ainda brinca de boneca, tenha a desenvoltura e maturidade como Carolina tem.

 A trama começa com algo inusitado e fora de sentido: uma aposta entre dois estudantes, Filipe e Augusto, e quem perdesse deveria escrever um livro. O motivo da aposta: Augusto, até então um namorador descompromissado com os sentimentos, deveria namorar uma das duas primas de Filipe, ou até mesmo a sua irmã, Carolina, e perderia a aposta caso voltasse da ilha suspirando ais de amores. Apesar de adolescentes e velhos estudantes de medicina, tal aposta mostra total imaturidade desses jovens, ou uma melhor argumentação do narrador para adentrar o enredo piegas do romantismo e levar o leitor a navegar sobre os fios de uma trama despropositada. Afinal, qual ou quais os motivos que levaram o Filipe a apostar suas primas ou até mesmo a sua irmã? Seriam os jovens aristocratas estudantes do início do Império tão abobados assim?

A Literatura difere dos outros gêneros textuais devido a três princípios na estética literária que deve ser observado pelo autor: a função total, a função social e a função ideológica, segundo Antonio Cândido, em sua obra “Literatura e sociedade”.

 “A função total deriva de um sistema simbólico, que transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos específicos e adequados.” (CÂNDIDO, 2014, p. 55). Quanto mais universal e atemporal, mais é a grandeza de uma obra. É a riqueza da construção literária que leva o leitor a se perguntar: E mudou alguma coisa hoje?, tal qual os sermões do Padre Vieira, que entrou para a literatura clássica pela sua atemporalidade.

 “A função social comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade.” (CÂNDIDO, 2014, p. 55). É a função social o que estabelece a empatia no leitor e o desperta para conscientização de uma cultura plural e universal.

 A função ideológica “Decorre da própria natureza da obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela comunicação” (CÂNDIDO, 2014, p. 56). Em outras palavras, a função ideológica é aquilo que o leitor entende como a mensagem consciente e não sectária que o autor deixa a entender em sua obra.

 Analisemos A Moreninha sob o ponto de vista da função total: há nesse romance a universalidade ou atemporalidade argumentativa que leve o leitor a viajar em quimeras romanescas? Há aquela imanência, que faça o leitor sentir a ansiedade de chegar ao ponto final e depois passar horas em delongas, imaginando-se personagem da história? É óbvio que não. Narrado linearmente na terceira pessoa, o narrador, que também faz vez de narratário, perde-se em descrições enfadonhas do ambiente levando o leitor à tentação de pular o parágrafo ou abandonar a leitura. Ademais, a passagem que gerou a “ideia feliz” de Filipe em mandar o protagonista usar o gabinete das meninas para poder olhar-se no espelho, sentir os cremes e o perfume, não faz nenhum sentido, a não ser o de colocar Augusto debaixo da cama e ouvir as confidências das garotas para usá-las mais tarde contra as garotas, no episódio bizarro da fada da fonte. Normal seria a curiosidade de Augusto, um adolescente, sentir a intimidade das primas de Filipe. O autor usou de uma argumentação infantil, mostrando a sua falta de criatividade para penetrar nos segredos femininos.

 Agora analisemos a obra pela função social: que papel desempenhou o romance que pudesse estabelecer relações sociais ou até mesmo mudanças na ordem da sociedade? Certamente o leitor terá dificuldades em encontrar uma resposta. Focando mais no caráter das personagens do que na construção do enredo, o autor trata com superficialidade os costumes do seu tempo, limitando-se a escancarar a bagunça em um quarto de estudante e a trazer à baila o comportamento instável e até mesmo volúvel de jovens adolescentes, bem citadas por Bosi como “[...] as galhofas de estudantes vadios” (BOSI, 2017, p.137).

 A pobreza literária é tanta que levou Machado de Assis a fazer algumas desconsiderações a respeito da literariedade das obras de Macedo ao resenhar O Culto do Dever:

 “Se a missão do romancista fosse copiar os fatos, tais quais eles se dão na vida, a arte era uma coisa inútil: a memorização substituiria a imaginação” (BOSI, 2017, p. 138).

 Bosi não perdoa em seus comentários: “O defeito estava em Macedo, sub-romancista pela pobreza da fantasia, sub-romântico pela míngua de sentimentos” (BOSI, 2017, p. 138).

 Quanto à função ideológica não carece queimar-se os neurônios em busca de algo que não existe. Passa ao largo das ideologias ou até mesmo de alguma mensagem incluída nas entrelinhas, a não ser de quer todo adolescente é igual, independente do século. Até mesmo a figura de um pai ideologicamente comprometida com a boa ação praticada pelo filho ao socorrer um velho enfermo, se desfaz completamente na súbita reação desse mesmo pai que põe o filho prisioneiro para que o mesmo não cumprisse seu compromisso firmado com os ilhéus. Ora, totalmente desnecessário esse capítulo e o romance teria passado muito bem sem esse desvio ideológico do pai, que depois passou a ser o mesmo pai zeloso de antes.

 Buscando socorro em “Os gêneros literários”, de Yves Stalloni, que justificasse uma réstia de literariedade no romance em análise, encontramos a “forma” como uma das componentes da narrativa: “Os acontecimentos só podem ser narrados por meio de um código, de linguagem escrita ou oral, limitando-se a literatura a levar em conta o escrito. Por meio desse código, o enunciado narrativo transforma-se em texto submetido, ele mesmo, às exigências e às leis da estilística” (STALLONI, 2001, p. 86). Considerando-se a estilística como recurso gramatical, é flagrante a pobreza na construção de figuras de linguagem, próprias da estilística, como as metáforas, metonímias, antífrases, etc., etc., etc.; considerando-se a estilística como “estilo pessoal” do escritor, não enxergamos nenhum traço marcante de sua personalidade nas obras que sucederam A Moreninha, pelo contrário, Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira, não poupa palavras na crítica ao autor, colocando-o no pedestal dos medíocres: “Tendo atravessado todo o Romantismo, pois escreveu desde os anos de 40 aos de 70, nem por isso nota-se-lhe progresso na técnica literária ou na compreensão do que deveria ser um romance” (BOSI, 2017, p. 137).

 Mas nem tudo ficou perdido no romance. Ele segue à risca a estruturação do romantismo no que concerne ao drama e à superação do herói de todos os problemas para, enfim, viver seu final feliz. Também deve se destacar o recurso não usual naqueles tempos: o uso da metalinguagem na construção da história do romance.

 Concluindo, podemos afirmar que A Moreninha está mais para documento histórico do nascimento do romance brasileiro e menos para o estudo sociológico dos cariocas vinte anos depois do advento do Império, e menos ainda para uma obra literária.  

 

Referências bibliográficas:

BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Org. BEZERRA, Paulo. São Paulo: Editora 34, 2017.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 51 ed. São Paulo: Cultrix, 2017.

CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 13 ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul. 2014.

MACEDO, Joaquim Manoel. A moreninha. Porto Alegre: L&PM. 2016.

NICOLA, José. Literatura brasileira – das origens aos nossos dias. 15 ed. São Paulo: Editora Scipione, 1999.

STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel. 2001

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