sábado, 1 de janeiro de 2022

Resenha do livro O Primo Basílio, de Eça de Queiroz.


Uma leitura menos acurada do livro O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, conduz o leitor a acreditar que se trata de mais uma história banal de adultério, coisa tão comum em Portugal do século XIX quanto o era antes do Êxodos e seus faraós cabulosos. Se assim não fosse, qual o sentido do Nono Mandamento nas Tábuas da Lei, em 1447 AC? O adultério é bíblico e até é citado no Novo Testamento quando Jesus Cristo pergunta à multidão de justiceiros que conduzia uma adúltera: “Aquele de entre vós que nunca pecou, atire-lhe a primeira pedra”. E continua sendo no século XXI e acontecerá enquanto existir dois homens e uma mulher sobre a Terra.

Seria muito simplista se acreditar que Eça de Queiroz, depois do sucesso do seu livro O Crime do Padre Amaro, gastaria tanta tinta e papel para escrever assunto que não era novidade para ninguém. Vamos ao resumo da ópera: Luísa reencontra o primo Basílio depois de muitos anos que ele deixou Lisboa com destino à província, radicando-se na Bahia, onde fez fortuna. Retornou à Europa e assentou residência em Paris. Um ano depois viajou a Lisboa para tratar de negócios e então procurou a sua prima, que, aproveitando a ausência do marido que se encontrava em viagem, se deixou envolver por seus encantos de conquistador barato. Descoberta pela criada Juliana, vê-se em maus lençóis. Passa a ser chantageada pela criada, que queria dinheiro para garantir sua velhice. Procura o primo e amante Basílio, mas este a deixa na mão: abandona-a à sua própria sorte

Eis o enredo: o drama de uma adúltera, Luísa, em crise de consciência e sob chantagem velada da serviçal Juliana, uma crítica ácida à burguesia lisboeta e uma provocação contundente à instituição casamento, um dos pilares de sustentação da Igreja. Entretanto as alegorias nos remetem para uma visão mais ideológica, visível nas suas entrelinhas que vai além da crítica ao comportamento da sociedade portuguesa que vive prisioneira do medo dos falatórios, mas que não deixa de cometer seus adultérios, alguns até escancarados, como era o caso da Leopoldina, amiga de infância de Luísa. Evidencia-se a crítica ao comportamento promíscuo do clero e à intervenção da Igreja no destino do povo. Critica severamente os políticos na voz de Julião em conversa com Sebastião: “Quando vier a revolução contra o expediente, o país há de procurar quem tenha os princípios. Mas quem tem aí princípios? Quem tem aí os quatro princípios? Ninguém...” Revela a miséria crescente e da exploração perniciosa do operariado, a irrisória remuneração, e o estado de escravidão das criadas, que, além do salário de miséria, só podiam comer as sobras, não podiam adoecer, trabalhavam duro desde o amanhecer do dia até depois das dez da noite e mesmo assim eram tratadas como animais: eram jogadas na sarjeta quando adoeciam e não podiam produzir mais. Em várias situações, tratou-se da despedida de Juliana por causa de um problema de coração e que poderia levá-la a óbito a qualquer momento.

Outro elemento alegórico que foge do lugar comum da crítica ao comportamento social, é o discurso ideológico, quer dito pelo narrador, quer na voz dos personagens. Quando Luísa, sob chantagem, divide suas roupas com Juliana e ainda lhe cede um quarto melhor, mobiliado, manifesta-se o socialismo utópico de Proudhon, largamente professado nas conferências do Cassino Lisbonense, onde se reuniam jovens estudantes e intelectuais, pregando a doutrina proudhoniana da revolução proletária sem armas. E não poderia ser diferente. Na quarta conferência no Cassino Lisbonense, Eça de Queiroz baseou seu discurso nas ideias de Proudhon, pregando a revolução que já se operava na política, na ciência e na vida social. O filósofo e político francês pregava justamente a revolução pacífica, que era justamente o que Juliana estava a fazer.

Ao se sentir “alguém” em seu vestido de seda, Juliana desapareceu na noite e ao ser indagada pela cozinheira Joana, respondeu orgulhosa de ter ido ao teatro, coisa inadmissível a uma criada. Assim, não resta dúvida de que a chantagem de Juliana sobre a patroa era o único instrumento que dispunha para praticar a sua revolução sem armas e sem sangue, conforme previsto no socialismo utópico, e assim se sentir incluída no mundo.

Por outro lado, na obra “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, encontramos a frase “a religião é o ópio do povo”, utilizada também por Carl Marx. Podemos encontrar referências análogas nas conversas do jantar na casa do Conselheiro Acácio, quando este diz ser a religião um freio, um bridão ao desenvolvimento. Nesse mesmo encontro, eles falam sobre a possibilidade de uma revolução comunista e Jorge diz ser um materialista convicto.

Para se entender O Primo Basílio é preciso analisar o contexto histórico. Portugal, que fora uma grande potência no século XVI, entrou no século XX como um país eminentemente agrário. Passou ao largo da revolução industrial que sacudiu a Europa. Na segunda metade do século XIX a sua decadência tornou-se instrumentalmente visível aos olhos do positivismo, largamente discutido nessa época. O positivismo de Comte teorizava sobre a legitimação da ciência como único método válido do conhecimento. Só se podia afirmar que uma teoria é correta se ela fosse comprovada através de métodos científicos válidos. A objetividade, a análise, a crítica da ciência, não só aos objetos ou coisas, mas, principalmente, ao relacionamento do homem enquanto ser social.

O positivismo influenciou a Arte e a cultura ocidental. Passou-se a buscar a imitação do real. Procurava se investigar as mazelas sociais e humanas. Surgiu então o Realismo, com uma vertente mais radical, o Naturalismo. Diagnosticava-se o cotidiano. Os ideais da revolução francesa ecoavam forte entre os estudantes e intelectuais liberais. A burguesia não triunfara sobre os privilégios da nobreza. Se o romantismo português lançara a pedra da liberdade e justiça, a elite vivia sob os privilégios da Igreja e pouco ligava para o lema “Liberdade, igualdade, fraternidade”. Enquanto os outros países europeus viviam a efervescência da revolução cultural e industrial, Portugal seguia na contramão da história, mergulhado em privilégios sociais de família e classe, sempre impulsionados pelo moralismo católico.

Foi nesse cenário que uma turma de estudantes e intelectuais de Coimbra fundou o grupo de crítica contestatória do sistema. Atacavam veladamente o romantismo e sua essência ultrapassada e nociva ao progresso. Eram jovens intelectuais, liderados pelo filósofo, poeta e político Antero de Quental. Esse grupo ficou conhecido como Geração 70, e foi o movimento cultural mais importante de Portugal.

Nas conferências no Cassino Lisbonense discutia-se não apenas a inversão da ordem, que daria aos operários o poder e o controle dos bens de produção. Defendia-se também uma arte que retratasse a realidade da vida em oposição aos excessos do subjetivismo romântico. Era a hora de se romper o caráter natural subalterno de seres humanos que somente a aristocracia e nobreza eram merecedoras de compaixão. Em Amor de Perdição, chorava-se rios de lágrimas pela morte de Teresa, mas não se dava um suspiro pelo suicídio da Mariana. Por isso que em O Primo Basílio, o narrador expõe as vísceras dos seus personagens. Era a filosofia da objetividade do Realismo posto em prática, a busca do objeto, do não eu, a imitação do real, cujo conceito do real era definido como “o que está fora de nós como objeto e pode ser captado pelos sentidos”.

Eça de Queiroz, principal nome do Realismo português, assim conceituava a nova escola literária: “O Realismo é uma reação contra o Romantismo; o Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade”. Nesse caminho, o autor traça a anatomia do caráter obsceno da sociedade e instituições portuguesas, escancarando suas maldades e podridões.

Dos personagens

Luísa é uma pessoa fútil, fraca de espírito, deixa-se seduzir pelo primo Basílio tão logo o marido viaja. Personagem excessivamente romântica ao ponto de vulgarizar os sentimentos e não saber distinguir os valores morais. Através dessa personagem alienada, o autor tece sua crítica mais incisiva ao Romantismo. Basílio é um ser imoral, indecente, sem caráter. O estereótipo do canalha que entra e sai de cena impunemente.

Jorge é um ridículo, suscetível às banalidades da vizinhança. Diz-se materialista e depois reza pedindo a intervenção divina sobre a doença de Luísa.

Juliana é uma pessoa recalcada, ressentida sexualmente. É a personagem que o narrador usa para fazer sua revolução utópica.

Sebastião é o único exemplo de bom caráter, cujas virtudes se destacam no mar do mau-caratismo.

D. Felicidade é a que prega religiosidade sem praticá-la. Sua flatulência constante deve-se à influência do Naturalismo.

O Conselheiro Acácio representa o conservadorismo e a mediocridade. Vem dele o adjetivo “acaciano”, que, segundo o dicionário Houaiss, significa “que ou quem se mostra afetado, ridículo pelo uso de fórmulas convencionais ao falar ou pela maneira pomposa de ser”.

O autor usa a técnica da narrativa na terceira pessoa, o narrador onisciente, porém preso aos personagens.

A unidade de tempo é mantida na ordem cronológica, como também a unidade de lugar que se passa em Lisboa.

Quando a canalhice triunfa sobre o final feliz, o narrador põe a pá de cal sobre o túmulo do Romantismo, realçando o projeto realista-naturalista na abordagem do atraso provinciano português, cujos personagens deixam-se influenciar pela apatia de um país decadente, tornando-os escravos do apetite sexual voraz que os eleva ao patamar dos animais.

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