Uma leitura menos acurada do
livro O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, conduz o leitor a acreditar que se
trata de mais uma história banal de adultério, coisa tão comum em Portugal do
século XIX quanto o era antes do Êxodos e seus faraós cabulosos. Se assim não
fosse, qual o sentido do Nono Mandamento nas Tábuas da Lei, em 1447 AC? O
adultério é bíblico e até é citado no Novo Testamento quando Jesus Cristo
pergunta à multidão de justiceiros que conduzia uma adúltera: “Aquele de entre
vós que nunca pecou, atire-lhe a primeira pedra”. E continua sendo no século
XXI e acontecerá enquanto existir dois homens e uma mulher sobre a Terra.
Seria muito simplista se
acreditar que Eça de Queiroz, depois do sucesso do seu livro O Crime do Padre
Amaro, gastaria tanta tinta e papel para escrever assunto que não era novidade
para ninguém. Vamos ao resumo da ópera: Luísa reencontra o primo Basílio depois
de muitos anos que ele deixou Lisboa com destino à província, radicando-se na
Bahia, onde fez fortuna. Retornou à Europa e assentou residência em Paris. Um
ano depois viajou a Lisboa para tratar de negócios e então procurou a sua
prima, que, aproveitando a ausência do marido que se encontrava em viagem, se
deixou envolver por seus encantos de conquistador barato. Descoberta pela
criada Juliana, vê-se em maus lençóis. Passa a ser chantageada pela criada, que
queria dinheiro para garantir sua velhice. Procura o primo e amante Basílio,
mas este a deixa na mão: abandona-a à sua própria sorte
Eis o enredo: o drama de uma
adúltera, Luísa, em crise de consciência e sob chantagem velada da serviçal
Juliana, uma crítica ácida à burguesia lisboeta e uma provocação contundente à
instituição casamento, um dos pilares de sustentação da Igreja. Entretanto as
alegorias nos remetem para uma visão mais ideológica, visível nas suas
entrelinhas que vai além da crítica ao comportamento da sociedade portuguesa
que vive prisioneira do medo dos falatórios, mas que não deixa de cometer seus
adultérios, alguns até escancarados, como era o caso da Leopoldina, amiga de
infância de Luísa. Evidencia-se a crítica ao comportamento promíscuo do clero e
à intervenção da Igreja no destino do povo. Critica severamente os políticos na
voz de Julião em conversa com Sebastião: “Quando vier a revolução contra o
expediente, o país há de procurar quem tenha os princípios. Mas quem tem aí
princípios? Quem tem aí os quatro princípios? Ninguém...” Revela a miséria
crescente e da exploração perniciosa do operariado, a irrisória remuneração, e
o estado de escravidão das criadas, que, além do salário de miséria, só podiam
comer as sobras, não podiam adoecer, trabalhavam duro desde o amanhecer do dia
até depois das dez da noite e mesmo assim eram tratadas como animais: eram
jogadas na sarjeta quando adoeciam e não podiam produzir mais. Em várias
situações, tratou-se da despedida de Juliana por causa de um problema de
coração e que poderia levá-la a óbito a qualquer momento.
Outro elemento alegórico que
foge do lugar comum da crítica ao comportamento social, é o discurso
ideológico, quer dito pelo narrador, quer na voz dos personagens. Quando Luísa,
sob chantagem, divide suas roupas com Juliana e ainda lhe cede um quarto
melhor, mobiliado, manifesta-se o socialismo utópico de Proudhon, largamente
professado nas conferências do Cassino Lisbonense, onde se reuniam jovens
estudantes e intelectuais, pregando a doutrina proudhoniana da revolução
proletária sem armas. E não poderia ser diferente. Na quarta conferência no
Cassino Lisbonense, Eça de Queiroz baseou seu discurso nas ideias de Proudhon,
pregando a revolução que já se operava na política, na ciência e na vida
social. O filósofo e político francês pregava justamente a revolução pacífica,
que era justamente o que Juliana estava a fazer.
Ao se sentir “alguém” em seu
vestido de seda, Juliana desapareceu na noite e ao ser indagada pela cozinheira
Joana, respondeu orgulhosa de ter ido ao teatro, coisa inadmissível a uma
criada. Assim, não resta dúvida de que a chantagem de Juliana sobre a patroa
era o único instrumento que dispunha para praticar a sua revolução sem armas e
sem sangue, conforme previsto no socialismo utópico, e assim se sentir incluída
no mundo.
Por outro lado, na obra
“Crítica da filosofia do direito de Hegel”, encontramos a frase “a religião é o
ópio do povo”, utilizada também por Carl Marx. Podemos encontrar referências
análogas nas conversas do jantar na casa do Conselheiro Acácio, quando este diz
ser a religião um freio, um bridão ao desenvolvimento. Nesse mesmo encontro, eles
falam sobre a possibilidade de uma revolução comunista e Jorge diz ser um
materialista convicto.
Para se entender O Primo
Basílio é preciso analisar o contexto histórico. Portugal, que fora uma grande
potência no século XVI, entrou no século XX como um país eminentemente agrário.
Passou ao largo da revolução industrial que sacudiu a Europa. Na segunda metade
do século XIX a sua decadência tornou-se instrumentalmente visível aos olhos do
positivismo, largamente discutido nessa época. O positivismo de Comte teorizava
sobre a legitimação da ciência como único método válido do conhecimento. Só se
podia afirmar que uma teoria é correta se ela fosse comprovada através de
métodos científicos válidos. A objetividade, a análise, a crítica da ciência,
não só aos objetos ou coisas, mas, principalmente, ao relacionamento do homem
enquanto ser social.
O positivismo influenciou a
Arte e a cultura ocidental. Passou-se a buscar a imitação do real. Procurava se
investigar as mazelas sociais e humanas. Surgiu então o Realismo, com uma
vertente mais radical, o Naturalismo. Diagnosticava-se o cotidiano. Os ideais
da revolução francesa ecoavam forte entre os estudantes e intelectuais
liberais. A burguesia não triunfara sobre os privilégios da nobreza. Se o
romantismo português lançara a pedra da liberdade e justiça, a elite vivia sob
os privilégios da Igreja e pouco ligava para o lema “Liberdade, igualdade,
fraternidade”. Enquanto os outros países europeus viviam a efervescência da
revolução cultural e industrial, Portugal seguia na contramão da história,
mergulhado em privilégios sociais de família e classe, sempre impulsionados
pelo moralismo católico.
Foi nesse cenário que uma
turma de estudantes e intelectuais de Coimbra fundou o grupo de crítica
contestatória do sistema. Atacavam veladamente o romantismo e sua essência
ultrapassada e nociva ao progresso. Eram jovens intelectuais, liderados pelo
filósofo, poeta e político Antero de Quental. Esse grupo ficou conhecido como
Geração 70, e foi o movimento cultural mais importante de Portugal.
Nas conferências no Cassino
Lisbonense discutia-se não apenas a inversão da ordem, que daria aos operários
o poder e o controle dos bens de produção. Defendia-se também uma arte que
retratasse a realidade da vida em oposição aos excessos do subjetivismo
romântico. Era a hora de se romper o caráter natural subalterno de seres
humanos que somente a aristocracia e nobreza eram merecedoras de compaixão. Em
Amor de Perdição, chorava-se rios de lágrimas pela morte de Teresa, mas não se
dava um suspiro pelo suicídio da Mariana. Por isso que em O Primo Basílio, o
narrador expõe as vísceras dos seus personagens. Era a filosofia da
objetividade do Realismo posto em prática, a busca do objeto, do não eu, a
imitação do real, cujo conceito do real era definido como “o que está fora de
nós como objeto e pode ser captado pelos sentidos”.
Eça de Queiroz, principal nome
do Realismo português, assim conceituava a nova escola literária: “O Realismo é
uma reação contra o Romantismo; o Romantismo era a apoteose do sentimento; o
Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta
a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa
sociedade”. Nesse caminho, o autor traça a anatomia do caráter obsceno da
sociedade e instituições portuguesas, escancarando suas maldades e podridões.
Dos personagens
Luísa é uma pessoa fútil,
fraca de espírito, deixa-se seduzir pelo primo Basílio tão logo o marido viaja.
Personagem excessivamente romântica ao ponto de vulgarizar os sentimentos e não
saber distinguir os valores morais. Através dessa personagem alienada, o autor
tece sua crítica mais incisiva ao Romantismo. Basílio é um ser imoral,
indecente, sem caráter. O estereótipo do canalha que entra e sai de cena
impunemente.
Jorge é um ridículo,
suscetível às banalidades da vizinhança. Diz-se materialista e depois reza
pedindo a intervenção divina sobre a doença de Luísa.
Juliana é uma pessoa
recalcada, ressentida sexualmente. É a personagem que o narrador usa para fazer
sua revolução utópica.
Sebastião é o único exemplo de
bom caráter, cujas virtudes se destacam no mar do mau-caratismo.
D. Felicidade é a que prega
religiosidade sem praticá-la. Sua flatulência constante deve-se à influência do
Naturalismo.
O Conselheiro Acácio
representa o conservadorismo e a mediocridade. Vem dele o adjetivo “acaciano”,
que, segundo o dicionário Houaiss, significa “que ou quem se mostra afetado,
ridículo pelo uso de fórmulas convencionais ao falar ou pela maneira pomposa de
ser”.
O autor usa a técnica da narrativa
na terceira pessoa, o narrador onisciente, porém preso aos personagens.
A unidade de tempo é mantida
na ordem cronológica, como também a unidade de lugar que se passa em Lisboa.
Quando a canalhice triunfa
sobre o final feliz, o narrador põe a pá de cal sobre o túmulo do Romantismo,
realçando o projeto realista-naturalista na abordagem do atraso provinciano
português, cujos personagens deixam-se influenciar pela apatia de um país
decadente, tornando-os escravos do apetite sexual voraz que os eleva ao patamar
dos animais.